quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Murinas Memórias


Rogério Parentoni Martins

Bolsista FUNCAP
Universidade Federal do Ceará
Departamento de Biologia


Ao contrário de Gregor Samsa, que se viu transformando em barata, o mesmo comigo não aconteceu. Sempre desconfiei desde os 3 anos que tinha muito a ver com roedores. Toda grande família, de capivara a rato pulador, esse do tamanho de uma tampa de garrafa pet, inspirava-me simpatia. Entristecia-me quando um primo era cruelmente esmagado pela trave da ratoeira, simplesmente porque não resistiu ao delicioso aroma do queijo meia cura. A felicidade de um rato e dos cidadãos mineiros é a de saborear diariamente um pedaço de queijo, feito com leite cru, sim senhor. Apenas um pedaço faz corações murinos e mineiros baterem com mais intensidade.
            A simpatia era tanta que não me importava que meus ancestrais medievais fossem considerados, mais do que as pulgas, os maiores responsáveis pela mortandade de 75 milhões de europeus de 1347 a 1356. Afinal que culpa tiveram, se a terrível bactéria era transmitida pela picada da pulga, que também sugava o sangue de meus ancestrais? É bom relembrar que àquela época a higiene era escassa nos domicílios, além da sujeira acumulada em vielas e becos.
            Ninguém é capaz de garantir que rato não se emocione, embora não chore. Eu ainda menos, dada minha condição híbrida. Não advogo a favor dos murinos ou humanos. Sempre procurei ser imparcial, pois meio rato e homem, nunca me senti à vontade para tomar partido, embora ora inclinasse para uma metade, ora para a outra, nada mais comum em naturezas em conflito. Felizmente, antes de emitir qualquer juízo de valor precipitado, conseguia retomar a posição de fiel da balança.
            Há forte argumento que os humanos universalizaram com a certeza de que não seriam contestados. Obviamente, ninguém pensa em fundamentar argumentos que possam servir contra si próprios, muito menos os murinos e os demais mamíferos rotulados irracionais. Assim taxativamente rotulados por não poderem se defender ou constituir advogado, pois aos irracionais só se concede emoção incontida. Por exemplo, ser privado da existência apenas por não resistir ao aroma de um pedaço de queijo.
            Há "irracionais" que inspiram medo, aversão ou até náuseas, murinos sem exceção. Há também os considerados sofisticados: os habitantes das correntezas dos rios, remansos e lagoas, mares, oceanos e pássaros canoros. Esses últimos são capturados pelos humanos e engaiolados para cantar. Entendo seu canto aprisionado, tristeza ou desabafo, prestem a atenção. Porém, segundo critério humano eu sou irracional quando sinto desse modo. Animais que vivem em meio líquido são considerados mais nobres que os rastejadores e outros tetrápodos. Haveria conflitos se os humanos, que se alimentam de certos animais e seus produtos, os rotulassem racionais. Isso equivaleria à antropofagia e seria motivo para deflagrar uma terceira contenda mundial, a guerra dos irracionais.

II

            Minha trajetória de rato, percebida aos sete anos, na verdade iniciou-se sete anos antes quando em meio a ninhada generosa encontrei-me sugando uma das mamas de mamãe, a qual tornou-se minha preferida e vigorosamente defendida contra as tentativas de usurpação de meus irmãos e irmãs. Não pensem que só entre os humanos há dificuldades em dividir quando se está faminto: racionais e irracionais se igualam na fúria. Dividir quando se tem muito é fácil para alguns, embora haja humanos, mesmo saciados, sempre desejando o que cabe a outros. Alguns humanos admitem que esse comportamento seja herdado de animais que os antecederam na escala evolutiva, por isso incontrolável. Até nessas horas a culpa era atribuída aos murinos e outros mamíferos que não gozavam prestígio junto aos magistrados da racionalidade. Para outros irracionais, como o urso panda e o bicho preguiça, o tratamento é benevolente. Ninguém duvidaria da mansidão de um bicho preguiça. Em sua lenta e desinteressada movimentação, alimenta-se somente de folhas e faz cocô e xixi semanalmente apenas. Faça um esforço sobre humano e imagine-se preguiça, descendo da árvore várias vezes ao dia para satisfazer as necessidades fisiológicas. Seria exigir muito desses pobres animais. Um bicho higiênico que fica confortavelmente instalado em um guarda-roupas como cabide, capaz de suportar prisão de ventre, se não é levado a uma árvore para que dela possa descer e obrar, é um pet perfeito. Eu mesmo mantive por um ano pet-preguiça fêmea, que denominei Sueli. Seu lugar de repouso era de fato o interior do guarda-roupas, dependurado como um cabide. Depois de um ano transferi sua tutela para um ex-professor de zoologia. O professor o mantinha durante o dia em uma árvore; à noite o alojava em sua biblioteca. Narrou-me o professor tê-lo encontrado morto, abraçado a um dicionário de alemão-português.
            Viver em árvores como vivem certos primatas, primos de minha meia parte humana, remete-me a Ítalo Calvino em "O Barão nas Árvores". O personagem do escritor italiano abandonou o conforto da nobre vida domiciliar e passou a viver em copas intercomunicantes de frondosas árvores. Todos o sabiam, mas raramente o viam tal a destreza do jovem barão em percorrê-las à sorrelfa. Os bichos arborícolas o tratavam com todo respeito, pois não tinha a mínima agressividade para com eles e muito menos os insetos hematófagos lhe sugavam, o que era inexplicável. Quando morreu não localizaram o cadáver. Estranhamente não se espalhou o odor putrefato da morte. Calvino, um homem elegante, nunca mencionou sobre as necessidades fisiológicas do jovem barão, sequer como obtinha a necessária proteína animal; folhas apenas não o nutririam adequadamente para que se comportasse tão solerte.

III

            Da generosa ninhada de doze irmãos apenas eu sobrevivi. O mamilo escolhido, de alguma forma, drenava a maior parte do leite cabível aos demais irmãos. A noção de igualdade de direitos e deveres deveria partir dos lares e tetas, mas não é o que acontece. Nunca me culpei por mamar mais que eles, pois como todos sabem, além de na época ser bebê rato, tenho o meu lado irracional desculpável. De Ponte Nova, zona da mata mineira onde nasci, parti para a capital dentro de mala antiga, daquelas de papelão imitando couro. No início, alojei-me em uma pensão perto da rodoviária, onde, cumprindo meu destino murino, fazia minhas refeições e necessidades, procurando urinar e defecar sempre com cuidado em lugares inacessíveis a humanos, em respeito à minha parte humana, embora a irracional me dissesse: faça em qualquer lugar. Nunca passaria à cabeça de um humano a possibilidade de existir um rato tão educado. Essa qualidade herdei de minha falecida mãe que nunca contou com meu pai para minha criação. Foi com sobremurino esforço dela que me tornei bacharel, sim senhor, bacharel em direito, não rábula.

IV

            Da infância à adolescência fui criança, ou melhor, meio criança muito observadora - qualidade necessária à sobrevivência dos murinos. Quando desejava, passava despercebido pelos humanos correndo atrás do tempo como se disputassem quem chegaria primeiro a lugar nenhum. A propósito, houve roedor, parente-longe, de hábitos saltitantes, derrotado por um quelônio em corrida sem obstáculos. Aliás, derrotado pelo corporativismo quelônico. Na noite anterior à disputa, um exército de mais de 50 quelônios se escondeu em arbustos ao longo da trajetória dos corredores. Desse modo sempre estavam à frente do pobre parente-longe. Muitos humanos aplaudem essa esperteza quelônica. Há quem diga que o caráter dos brasileiros foi moldado pela experiência e corporativismo quelônicos. Mas os brasileiros atribuem a culpa aos portugueses, que aportaram a pindorama; seguidores de Dom João VI e família, em fuga da ameaça do poderoso exército napoleônico. No entanto, há controvérsias como qualquer opinião que se profira na face da Terra. Como pronunciou precisamente conhecido filósofo alemão: não há fatos, apenas versões. Cada versão atende a interesses próprios. Fato ou versão, diz-se que brasileiros têm dificuldade em assumir responsabilidades pelos seus equívocos, em geral os atribuindo a outrem. Nascido no Brasil, o leitor duvidará sobre a formação de meu caráter. Dada minha personalidade híbrida, confesso ter sido conflituosa. Pensei em solidarizar-me com o parente longe, vilmente enganado pelo embuste quelônico. Ao mesmo tempo admiti parte de meu caráter devida aos quelônios. Por isso, sempre permaneci na dúvida como deveria agir, o que era parcialmente resolvido pelo contato mínimo necessário com humanos e murinos. A filosofia ajudou-me a refletir de forma abrangente e a repelir polarizações.

V

            Na adolescência cresceram-me bigodes e espinhas. Achei-me ridículo; revoltei-me como qualquer adolescente humano. Guinchava mais ridículo ainda, entre baixo barítono e tenor. Poderia tornar-me um castrato, préadolescentes cujos testículos eram extirpados para que mantivessem voz aguda típica nos coros de capelas e igrejas. Tal prática foi adotada a partir do Império Bizantino, 400 d.C. Os castrati existiram até 1913, quando o último deixou o coro da Capela Sistina. Embora soubesse que os castrati eram muito bem remunerados, nunca cogitaria tornar-me eunuco, mesmo que tivesse nascido no período em que a prática era comum.
            Na adolescência, adolescentes fêmeas interessavam-me, na medida da percepção de suas modificações físicas, seios, quadris, olhares instigantes. Como algumas eram chamadas gatinhas, preferi-me afastar para não tornar minha metade murina alvo de atenções e cobiças desmesuradas. Usando a metade humana livrei-me de ser considerado refeição fácil por alguma gatinha interesseira. Por isso humilharam-me humanos e murinos, pasmem-se. Achavam-me desmerecedor do orgulho das respectivas raças. Foi questionada minha virilidade, sofri bullying. Nunca tive um momento de heroísmo para ser aclamado. Nem mesmo quando salvei uma gatinha do afogamento. Ela própria tratou de esconder o fato, a fim de não dar publicidade a um adolescente com virilidade questionada. Achei melhor, pois assim não exporia minha natureza híbrida. Poderia dessa forma tornar-me objeto de interesse de algum cientista, cujo conhecimento em si, não é de interesse, mas apenas prestígio e prêmios, mesmo que fraudem trabalhos e deslealmente compitam com colegas honestos e talentosos. Ah, a natureza humana, essa natureza controversa, sempre questionável.

VI

Quando entendi a importância dos livros, era chamado "rato de biblioteca". Nada mais meio natural. Era leitor ávido. Horas a fio despendia lendo, mesmo quando o livro fosse de sofrível qualidade literária. Continha o ímpeto de roê-lo e transformá-lo em papel picado, disponível para forrar o ninho de alguma parente gestante. Muitas vezes esse ímpeto vinha intensamente. Pensava se cedesse pelo menos mais da metade dos livros da biblioteca pública teriam esse trágico fim. Aprendi História contada de várias maneiras, sempre na versão dos vencedores. Nunca acreditei em nenhuma delas, pois pensava em certa inclinação comum a felinos, a de puxar a sardinha para sua brasa, que os tornava míopes e sectários. Impérios foram assim constituídos, à base da força, escravidão, mas enaltecidos como civilizados. Nesse sentido, sentia-me mais civilizado, dado meu senso crítico e imparcialidade.
            Os felinos sempre foram respeitados, principalmente devido a seu esporte favorito: nos caçar. Sabe aquelas almofadas sobrepostas às curvadas garras desses cruéis animais quando em marcha? Permitem seu caminhar sorrateiro. Se o murino for desprovido do sexto sentido certamente não escapará das impiedosas garras. Presenciei a morte de muitos concidadãos nas garras desses algozes. Mesmo nutria uma secreta admiração pela independência que conquistaram no decurso de sua evolução. Respeito também ratos e humanos independentes e respeitosos. Meu lado murino admira os indianos, especialmente os co-habitantes com diversos animais. Alguns consideram estranha essa convivência harmoniosa, tachando-os mentalmente perturbados ou santos. Santo mesmo foi o faquir "baba, o santo que rola". Rolou 25.000 km de Nova Dehli a Bombaim, ida e volta, sempre acompanhado por fiéis prestativos. Populares dos vilarejos adjuntos ao trajeto proviam-lhe água, pouca comida e abrigo contra o mau tempo. Sabida é a independência dos faquires da quantidade de tudo. Libido? Nem pensar! O oposto de certos gurus bem alimentados que fornicam todas as mulheres de sua comunidade. Pena que morando em outro continente e de posses restritas, não pudesse viajar à Índia e acompanhar parte do rolamento do santo Baba. Se fosse apenas para ver alguém passar fome, nunca precisaria de sair do meu país. Mas minha motivação era mais metafísica que mundana.

VII

            Levei comigo o apelido de rato de biblioteca para a universidade onde cursei direito. Lá meu apetite por livros tornou-se tão aperfeiçoado quanto conhecido. Presumindo que seria superficial por ler tão rápido, levantaram suspeitas sobre meu comportamento durante as provas. O grau máximo que sempre obtinha incomodava a colegas e professores. Todos sempre de olho para tentar pegar-me em delito de cola. Soube que até faziam apostas sobre quem conseguiria o admirável feito. Admito, professores e colegas invejosos da minha capacidade. Curioso invejarem um rato. Apesar de constantemente vigiado, nenhum atingiu o intento, mas custou-me uma neurose: a cada seis meses mudava de barraco e bairro. Quando não havia mais bairro, retornava ao primeiro, confiante que ninguém mais se lembraria de mim. Dessa forma continuei o ciclo.

VIII

Novamente, minha virilidade, agora adulto, foi questionada. O contrário que acontecia a alguns adolescentes, que eram perdoados. Explico: havia sempre o argumento de que na fase inicial da adolescência o gênero é indefinido, por isso os juízes da moral eram condescendentes quando um desses adolescentes era flagrado em aprontamentos de moça. Não deixavam, todavia de adverti-lo sobre a inadequação desse comportamento considerado efeminado na vida adulta. Com um adulto é diferente: se não for macho, é sem vergonha. Os preconceitos são impiedosos para os que integram grupos marginalizados por serem diferentes apenas. Não me refiro apenas à questão de gênero, mas ao comportamento que se espera de um adulto em determinada cultura guiada por propósitos machistas ou feministas. Oscar Wilde foi para a prisão por ser homossexual. Lá escreveu De Profundis. Uma corajosa e verdadeira admissão existencial de culpa. Não por ter infringido a lei, mas por ter sido susceptível ao extremo aos efeitos da paixão. A prisão, porém, não arrefeceu seu senso crítico, sequer diminuiu o respeito dos que o consideravam um grande escritor.
            Na história da origem da moralidade acredita-se, com alguma razão, que os poderosos nas sociedades monárquicas e eclesiásticas, nobres e sacerdotes, é que resolveram serem eles detentores e exemplos da moral elevada; os pobres e ignorantes, imorais. Quando pensava sobre isso, resultado não só de minhas leituras, mas também de reflexões, me intrigava se era meu caráter híbrido que me permitia olhar com clareza e criticar os autoritarismos de quaisquer naturezas. Nem por isso, me sentia superior aos homens, sequer aos ratos. Essa dúvida me acompanhou até a morte. Mas precisaria saber disso e depois não resistir ao desejo de defender a idéia de que homens criados em laboratório com genes murinos seriam mais nobres que os homens puros? Isso não faria diferença alguma para os autoritários e déspotas, menos ainda para o homem comum preocupado com sua sobrevivência e humilhações impostas por seus empregadores. Semideuses despóticos que obrigam pobres coitados a horas de trabalho insano e lhes pagam com sobras de suas lautas refeições.
            Devo salientar minha aversão à política partidária e ao joguinho de interesses pessoais que os motivam a candidatar-se. A única coisa que me interessava era ser independente e logo concebi que se fosse professor universitário competente, quem dependeria dos produtos de minha competência seriam os reitores. Assim, sequer faria questão de lhes saber os nomes. Maria, João ou Manoel, tanto faria. Eu de fato me reconhecia independente. Até mesmo os de minha meia raça que frequentavam as bibliotecas, refeitórios, salas de aula e laboratórios de universidades, não fossem independentes, não teriam minha admiração. Nestes casos ficavam indiferentes a meu comportamento ou me consideram esnobe. Mas seguia pensando e agindo da forma que pensava. Como disse não poder viajar ao Exterior, devido a meus recursos escassos, sempre tive curiosidade para saber sobre o comportamento dos murinos de Harvard e MIT. Sequer o soube pelos livros, que nunca mencionavam sobre o comportamento de meus semelhantes cidadãos norte-americanos.

IX

            Na formatura não compareci para não me emocionar e porque só minha falecida mãe faria questão que comparecesse, para que se orgulhasse do único sobrevivente de sua ninhada. O vazio que me acometeu logo após a formatura, foi inexplicável. Em parte, pela angústia de me perguntar: e agora? Logo recuperei-me e fui aprovado no exame da ordem. Poderia agora exercer a profissão. Porém, causou-me tristeza porque nunca poderia defender outro murino. Murinicidas, em vez de serem penalizados, eram aclamados como heróis, principalmente pelas mulheres. Nunca havia indiciamento e acusação para esses heróis de donzelas sempre muito criativas na emissão de seus gritinhos de pavor.

X

            Minha humana metade pensava na morte como fatalidade para outrem, custosa e injusta para mim. Esperava de certa forma eternizar-me por meio de convencimento duvidoso. Nada mais que esfarrapadas desculpas que justificassem meu medo de morrer. Minha parte roedor não sofria essa agonia. Creia-me: é mais fácil ser rato que ser gente. Ninguém duvidará dessa verdade, até mesmo porque proferida por quem a vida inteira desfrutou de dupla personalidade.
            Às vezes o desespero me acometia como abismo do qual não se enxerga o fundo. Li Sartre, Camus, João Cabral, Guimarães, Root. Garcia Marques furtou-me horas de sono, que julgava bem empregadas, pois sentia-me especial. Mero sentimento como outro qualquer que utilizava como subterfúgio para não encarar de frente a terrível dificuldade de existir. No íntimo a verdade ecoava impiedosa, mas eu tinha os livros, jazz e filmes que me conduziam temporariamente para um mundo fictício, que teimava ser real. Sair de casa tornou-se uma dificuldade escondida com desculpas sobre a violência crescente nas grandes metrópoles e suas periferias apinhadas de sobreviventes, muitos, com razão, desesperados. As igrejas cumprindo seu papel intimidador prometia diariamente os mais abomináveis castigos àqueles que não contribuírem monetariamente para satisfazer os seculares apetites de sacerdotes parasitas. Nunca a Igreja para mim pareceu lenitivo. Ao contrário, uma casa de martírios, embustes e falsa segurança. Enquanto a vida rola, Roma assiste indiferente a miséria humana.

XI

            Falar a verdade sempre foi visto com intolerância ou grosseria nesse nosso país de pessoas melindradas. Prefiro ser intolerante que omisso. Uma decisão que coube à minha metade humana. Esse existencialismo real empurrava-me cada vez mais para livros e reflexões, até o momento que me senti incapaz de proferir uma única palavra e escrever uma única linha. Achava que meu fim estaria próximo. Com essa sensação vivi meus últimos 30 anos. Sim, dos 7, quando despertou-me a consciência da finitude aos 85 quando o esgotamento total levou-me ao CTI. Canulado, entubado, atado à vida por delgados fios, ainda era capaz de pensar. Apenas a morte suprime a consciência. Quando isso acontece, deixa um corpo inerte, rígido, paralisado pela eternidade. Se essa confissão lhe perturbar de tal modo que comece a refletir, advirto-o: estará entrando em território hostil, onde poderá voltar-se contra si mesmo e se canibalizar. Porém, acharia incomum o comportamento de privação da vontade e exposição das vísceras para abutres? Veja, já sobrevoam em vôo planado, olhos à procura do desespero. Uma carcaça humana tem um sabor adocicado, diferente das carcaças animais. Por isso, esses lúgubres seres mostram por elas certa preferência. Você desejaria que eu parasse e me voltasse a temas amenos. Não consigo, meu caro, uma vez no vórtice é impossível salvar-se. Para você é mais fácil, pois a tragédia é minha. Quando vir que a tragédia poderá ser sua, aconselho-o fechar o livro. Se tiver coragem de continuar, é porque ama o perigo ou não se importa o mínimo com sua sobrevivência e lucidez. Narrar-lhe-ei como minha lucidez foi consumida pela depressão.

XII

            Sou deprimido desde o momento que minha consciência apresentou-me o mundo. A reação foi de espanto. Nunca dela me livrei. Aquela de algo não está certo, isso é estupidez, estou boquiaberto. Vez ou outra preferiria que alguém suprimisse minha vida, pois fui muito covarde ao admitir que não tinha autonomia para fazê-lo. Incapaz de decidir se queria ou não viver. Convenhamos, isso é vida plena? Em um único mês emagreci seis quilos. Como sempre fui alto e magro, a magreza agora realçada pela depressão fez-me imagem de faquir indiano. Minha vida teria mais sentido se eu rolasse como Baba, o Santo que rola. É preciso ser um titã, mais que obstinado, para rolar 25.000 Km. Mais do que Sísifo filho de Eolo, deus do vento, e Enarete. O instinto de sobreviver predominou. Procurei ajuda de gastroenterologista que virou-me pelo avesso, à procura da razão para seu diagnóstico. Pressenti que adoraria, apesar de que negaria até a morte, em diagnosticar-me um câncer maligno. Seria sua forma de se afirmar, de mostrar competência. Não o julgo por isso, mas não houve diagnóstico algum, pois o desconforto e desespero não era físico. O gastroenterologista não tinha o tino de certos clínicos que estudam a vida inteira e ainda têm dúvidas. Um deles é que diagnosticou corretamente. O que soube quando me prescreveu potente antidepressivo. O mundo nunca havia me parecido tão colorido, tão bom de viver. Bom humor e segurança fizeram-me retomar meu trabalho. Nessa época, li o genial Pantaleão e as visitadoras. Mas evitei O Pequeno Príncipe e Meu pé de Laranja Lima. Como você deve estar quase fechando o texto, o que perturbaria minha intenção de ser bem aceito, narro como a filosofia ampliou minha sensação de impotência.

XIII

            Antes de passar à filosofia, esperei que perguntasse minha origem humana. Como não perguntou, assim mesmo lhe direi. Minha origem é multirracial, como grande parte dos brasileiros. Avós maternos italiano e ela descendente de Puris (assim apelidados por tribo rival: gente miúda, fraca, gentinha, de baixa estatura). Avó paterno mulato, ela portuguesa. Todos de famílias humildes, seja no Brasil ou Europa. Os europeus que chegaram em minha cidade, Ponte Nova, interior de Minas, migraram ao final do século XIX. Vieram tentar sorte melhor no Brasil, devido à escassez de trabalho em suas regiões de origens. Os Puris mantiveram duas aldeias em Ponte Nova e se agregaram aos portugueses em fazendas, até o século XIX, quando foram dizimados ou miscigenados. Esse foi o caso de minha bisavó. Conheci-a apenas por um retrato amarelado, mesmo assim vi que fumava cachimbo de barro. Dessa gente simples e trabalhadora originei-me recebendo valores que me acompanharam até o final. Meus pais conseguiram sobressair-se por meio dos estudos e montaram uma pequena biblioteca em nossa residência. Daí veio meu interesse pelos livros, tanto para roê-los, quanto para lê-los. Percebo seu pouco interesse por esses detalhes, que de fato mais a mim interessam. Como já havia notado que filosofia não lhe é totalmente estranha, passarei a narrar como fui influenciado por meio de leituras de certos filósofos cujos livros repousavam nas prateleiras das estantes da biblioteca da casa de meus pais.

XIV

Exceto às vezes linguagem demasiadamente rebuscada e pensamentos de difícil compreensão, a leitura de filósofos que fazem esforço para serem entendidos pode ser fonte de prazer. Reconheço que a vida agitada das grandes metrópoles pode influenciar negativamente na capacidade de concentração para realizar a leitura reflexiva que a filosofia necessita para ser compreendida. Muito mais fácil, apenas para passar tempo, é a leitura de livros superficiais de idéias e conteúdos insignificantes para o conhecimento. Infelizmente, esses livros atingem um volume de vendas muitas vezes superior à dos livros de filosofia. Apesar de não poder afirmar com um grau razoável de certeza, suspeito que possa ter sido uma das exceções. Desde a adolescência tenho um hábito regular de leituras que de certa forma incentivou-me a escrever poemas e contos curtos. A maioria escrita naquela época era de incipiente qualidade literária. Creio que melhorei na vida adulta, principalmente quando intensifiquei leituras em filósofos cujas idéias me atraiam. Houve um período no qual escrevi apenas textos científicos, cuja linguagem especializada e hermética é compreensível apenas para os iniciados. Ortega Y Gasset critica o especialismo do conhecimento: Aqueles que sabem muito de pouco e se mostram arrogantes nessa pequenez. Quando percebi essa limitação, escrevi alguns textos de divulgação científica, a fim de aperfeiçoar a qualidade dos escritos para que um leigo interessado pudesse entender um tema científico. Quinzenalmente, por dois anos, escrevi em um jornal da cidade sobre temas variados, inclusive filosofia, em um espaço de 45 linhas. Alguns desses artigos foram com a colaboração de colegas de diversas áreas do conhecimento. Essa iniciativa fez com que prestasse atenção em um universo de conhecimento mais amplo. Dessa época, até exato momento, meu interesse pela filosofia foi-se ampliando significativamente com o incremento de leituras sobre o tema. Para que essa narrativa não se torne enfadonha, digo-lhe que o prazer que tenho em ler, compreender e escrever ocupa boa parte de minha vida. Logo percebi que refletir intensamente e conseguir exprimir algo não corriqueiro exige episódios de total abstração dos rumores da agitada vida moderna. Acostumei-me a escrever escutando jazz. Sempre interpretei a linguagem do jazz expressando liberdade. De outro modo, se não me entediasse a vida do campo, viver em algum lugar onde o ritmo de vida é ditado pelo canto dos pássaros poderia ser favorável à minha leitura e escrita. Porém, sou um rato urbano de frequentar grandes bibliotecas públicas e livrarias, raras em nosso país. Existem apenas em metrópoles, por razões óbvias. Para finalizar, pois noto certo desconforto em seu semblante, apenas digo ser muito difícil para mim viver sem filosofar, o que para muitos, espero não para o senhor, poderá ser considerado uma vida fútil, sem efeito prático algum. Não tenho interesse algum em provar nada para quem pudesse ter essa impressão sobre a importância da filosofia. Seria inútil. Além disso, cada um vive do jeito que gosta ou que é obrigado; neste último caso apenas posso lastimar.

XV

Nunca me atraíram narrativas longas, detalhadas por achá-las entediantes. Não consegui ler Proust até o fim, sequer Ulisses, na excelente tradução de Antônio Houaiss. Ulisses conseguir ler as primeiras 50 páginas, enquanto convalescia de uma cirurgia para corrigir uma hérnia inguinal. Minha mãe humana se orgulhava de ler todos os livros que lhe caiam nas mãos até o fim, mesmo que fossem entediantes. Quando lhe dei Cadernos de Lanzarote, de Saramago, porque só consegui lera as primeiras páginas, descobri por acaso que minha mãe saltava várias páginas. Questionei-a, mas não deu o braço a torcer: salto porque já sei o que ele vai continuar falando.   Grande Sertões o li três vezes. Foi traduzido ao alemão com o título Wildnist. Deixo claro que não conheço a língua alemã. Sou monoglota de pai e mãe. As poucas aulas em alemão que frenquentei não me motivaram a continuar. Por força de ler textos científicos aprendi um inglês limitadíssimo. Quando fui aos estados unidos e tive que proferir uma palestra, deu-me uma cólica que suportei bravamente durante 50 minutos, sem saber o que falei. Mas respondi diversas perguntas. Antes de iniciar a palestra, para tentar ficar mais a vontade usei o expediente de contar uma piada a estilo americano: quando cheguei aqui não sabia falar coisa alguma; agora sei falar batata frita. Como esperava, todos riram e isso tornou o ambiente menos hostil e a cólica mais suportável. Nunca mais cometi desatino semelhante. Sequer procurei aperfeiçoar meu inglês, mesmo assim sobrevivi razoavelmente na academia por 37 anos. Aposentei-me porque estava achando o ambiente acadêmico muito pouco estimulante e competitivo. A partir daí vivi filosofia até o ultimo instante de vida.

XVI

Disse uma vez que o escritor só consegue terminar de escrever um livro quando sabe o fim de antemão. Ontem, eu sabia qual seria o fim desse escrito. Hoje não mais sei. Mas não posso terminar abruptamente, o que seria aconselhável, para que os leitores não perdesse a paciência. Por isso decidi escrever mais algumas linhas, que garanto poucas. Vou poupá-lo desse dissabor, mesmo sabendo que é disciplinado o bastante para encerrar a leitura sem chegar ao final.
            Acho muitos filósofos chatos e dissimulados. Muitos querem mostrar-se humildes, mas cedo ou tarde a arrogância aflora sem hesitação. Quando isso acontece, conhecemos seu verdadeiro caráter: para não se mostrar deficientes, esquivam-se de perguntas inteligentes usando o asqueroso argumento de autoridade, muitas vezes humilhando os alunos que colocam em questão sua honestidade intelectual. O filósofo judeu-tcheco, Vilém Flusser, que viveu 30 anos no Brasil, escreveu em 1967 para o Estado de São Paulo um artigo que me fez muito sentido. Designou tratadista àqueles filósofos que não se mostram no texto. São intelectualmente honestos, mas existencialmente desonestos. Ensaístas os que não têm medo de se mostrar humanos e são intelectualmente honestos, como Nietzsche foi. Apenas para ficar nos alemães, Kant contrastava a Nietzsche: é perfeito exemplo de tratadista. Você deve estar se perguntando, com razão, o que será que esse murino pensa que é? Minha situação é tão indefinida que nem sei se sou filósofo. E para pelo menos ser intelectualmente honesto encerro essa narrativa, incompleta como qualquer outra; prometo que não terá seguimento. Evado-me como rato que também sou: desculpavelmente irracional.

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