Rogério Parentoni Martins
Poderíamos
imediata e soberanamente, com certo ar de irritação, responder: Ora, que
pergunta! Claro que bactérias não pensam; bactérias naturalmente (quando se usa
a palavra “natural” acaba-se o diálogo, parece que tudo foi resolvido) não
pensam; é óbvio que bactérias não pensam, pois não têm cérebros. São formas de
vida primitivas, que evoluíram há bilhões de anos, mas não pensam. Mas embora
não pensem têm preferências alimentares, senso de orientação, inclusive
magnético, estratégias e táticas de sobrevivência sob as piores condições
ambientais em todos os cantos do planeta, mas não pensam: o que elas fazem é
trivial, resultado da seleção natural, apenas.
Não se esgotam aqui as possíveis denegações sobre o estado apedeuta das
bactérias, inclusive os que lhes reconhecem características que lhes permitem
ser panglobais: onde houver a mínima quantidade de matéria orgânica lá estarão.
Por meio da abordagem socrática-aristotélica poderíamos
admitir sem dificuldades que só seres cerebrados pensam. Barata tem cérebro, logo
pensa. Barata não tem cérebro, alguém diria, apenas um nódulo neural ou caroço
situado na região dorsal interna da cabeça. Um emaranhado de neurônios, que
fazem as baratas serem mais notadas e temidas que cada um de nós. Elas, similar
às bactérias, são primitivas que se distribuem por todo o planeta, passeiam em
shoppings, em cruzeiros e voos transoceânicos. Barata comum caseira, nome
científico, Periplaneta americana Linnaeus, 1758.
Não têm pedigree. Bactérias têm, mas não distinguem entre classes sociais e
ainda pegam carona nas baratas. Francis Bacon, racionalista e súdito da rainha,
em 1700 e algumas dezenas, resolveu testar estatisticamente se maior ou menor
mortalidade existiria entre crianças nascidas em famílias reais do que entre as
dos súditos plebeus. Consultou os registros de mortalidade dos primeiros e
segundos. Morriam mais crianças nascidas em palácios de famílias reais cheios
de baratas, do que o contrário. Concluiu que o poder da reza cotidiana dos
súditos, pela vida longa dos primeiros, não surtia o efeito esperado. A não ser
que a maioria dos súditos não rezasse. O que seria inadmissível. Gostaria saber
o que foi feito de Francis após esse estudo. Ninguém sabe, só as bactérias.
Quem tem cérebro teria mais dificuldade para sobreviver a
mudanças ambientais drásticas? Ora, que pergunta absurda! Absolutamente! Quem
tem cérebro traça planos, estratégias capazes de solucionar qualquer tipo de
problema, por meio de criatividade e inventividade. Basta observar como a
criatividade humana se expande por todo o planeta...
Um leão ou uma girafa teriam facilidade de viver no deserto
de Atacama? Eles têm cérebros, ou não deveríamos chamar a massa que se aloja no
interior de seus crânios, cérebro? Talvez multinódulos agregados, mas não
cérebros; girafas, especialmente, parecem não tê-los. E pensar que há baratas
que vivem exclusivamente associadas a leões e, ainda a serem descobertas, espécies
de bactéria associadas a girafas e preguiças. Disse um ecólogo evolucionista
que a evolução dos mamíferos e “nosotros”
só foi possível devido à associação com microrganismos. Esse interacionismo não
faz sentido ao senso comum, que nunca se lembra de bactérias, sequer quando tem
urgência intestinal. No início do século 20, uma senhora acompanhada de sua
mucama, perguntava no armazém do português: O senhor tem vaso côncavo para
necessidades noturnas? Minha imaginação ficcional interpreta a suposição que
somos mais microorganismos que o resto: se todos os microrganismos que vivem em
nosso corpo fossem de uma só vez eliminados, nossas estruturas moles –
inclusive o cérebro – se derreteriam como o excesso de tinta fresca em um
quadro recém-pintado. Não passaríamos de um borrão. Dr. Dráuzio Varela adverte:
“estamos sempre correndo riscos à medida que tomamos doses cavalares de
antibióticos e favorecemos cepas de bactérias resistentes que também podem nos
transformar rapidamente em borrões ou, tecnicamente, matéria orgânica semitransformada”.
Mas a outra dele foi magistral! Escreveu um artigo em jornal ensinando-nos a
fazer cocô para evitar hemorróidas. Sim senhor! E ainda disse que privada não é
biblioteca. Por essas e outras que amo nosso país. A brevíssima aventura humana
sobre a terra é um sonho evolutivo que poderá se esvanecer rapidamente, mesmo
com toda nossa inventividade, arrogância e sabendo fazer cocô. Se o destino de
99% das espécies que até agora existiram foi extinguir, quanto tempo haverá
ainda para aumentar a longevidade da população, desmatar florestas para virar bois
e desfrutar as novas tecnologias engendradas em cavernas modernas
hipoalergênicas? Muito tempo, diriam os otimistas, que se consideram imortais.
O que nos diriam as bactérias sobre a ética, respeito e solidariedade?
Obviamente nada, pois não pensam e seu senso ético é magnético apenas. Aliás, abundam
entre nós os que carecem de ética; nesse aspecto são indistinguíveis das
bactérias, ora não são tão íntimos? Os fins justificam os meios (coitado do
Maquiavel, que não deve ter dito isso, morreu pobre e exilado por causas dos
políticos de sua época). Ora todos querem melhorar de vida, não é? O discurso
politicamente correto é o de que todos têm iguais direitos e devemos melhorar
de vida. No Ceará, um político falou que ia botar privadas em casas de pobre. Dr.
Drauzio aplaudiu a nobre iniciativa. O político deu ao dinheiro destino “desconhecido”.
Resultado: os coitados ainda estão fazendo no mato e se limpando com folha de
bananeira. Até mesmo a celebrada moral kantiana derrapa quando o filósofo
alemão afirma: “Fiat iustitia, pereat mundus” (faça-se justiça mesmo que o
mundo se phôda). A citação latina e respectiva tradução de “chupei” do
colunista da folha Helio Schwartsman, na qual não havia a palavra de baixo
calão. Trotsky, aquele que disse que a revolução começa na escola, tem um monte
de fãs em nosso país que o festejam mensalmente. O festejado disse ser legítimo
assassinar, conspirar e etc, mas nunca ser infiel ao partido. Não sei de onde
“chupei” isso, mas não foi da capitalista Wikipédia. O próprio foi transformado
por meio de uma picaretada que lhe furou o crânio. As bactérias se empanturram
de tanta ideologia...
Olhe, olhe! Como se diz no Ceará: encerre definitivamente essa
prosa ridícula, posto que medíocre: só homens, mulheres e crianças têm cérebros
verdadeiros. Alguns melhorzinhos são cópias melhoradas dos que têm as esponjas
e estrelas do mar. Mas apenas crianças os têm infantis? Sei não... Julgam saber
e garantir os estudiosos de anatomia comparada que o verdadeiro cérebro, o
cérebro nobre, evoluiu a partir de protocérebros, cérebros rudimentares, ou
recuando ainda mais no tempo, evoluiu de criaturas descerebradas semelhantes às
bactérias atuais. Uma geleia geral. Seria uma grande ofensa, afirmar que
evoluímos do cocô de bactérias? Isso não sei, mas que não sabemos fazer isso
Dr. Varela garante.
Para que recuar e olhar o passado se o que mais nos
interessa é o progresso? Historiadores defendem o assar de suas sardinhas
afirmando que olhar o passado é necessário para evitar erros futuros. De jeito
algum, o passado só serve para os historiadores não passarem fome. E o presente?
Vivemos do passado, presente ou futuro? Acho que dos três e de nossos desejos.
Muitíssimos aplaudem emocionados as conquistas de nossos nobres cérebros. O que
é a ciência, professor! Não nos permitimos em público declarar um da nossa
espécie “burro”, isento dos raciocínios mais elementares. O que fazemos farta e
impiedosamente à sorrelfa. Nossos cérebros nobres nos fazem cavalheiros de
perucas, punhos de renda e meneios que circulam por salões vienenses fofocando
ao som de Mozart.
Nossos cérebros tudo nos permitem. Não há limitações ao ato
de pensar, será? Penso o que quero? Talvez, mas falar o que penso não é bom
para os que governam e pode causar depressão em nossos amigos... Nossa nobre
causa é a de sobreviver e reproduzir. Aliás, o cérebro evoluiu não foi para
isso? Ou para dormirmos dentro de uma barrica e cuspir no prato que lhe servia
comida, como o fazia Diógenes, o cão. Aquele da lanterna, que procurava um
homem honesto. Pirado: botou fogo na casa e foi dormir dentro de uma barrica.
Aliás, para que os gregos faziam barricas? Tenho uma hipótese inspirada na
idade média. Adivinhem vocês que são inteligentes...
Sobreviver e reproduzir não são de fato o que a grande
maioria de nós faz? Ademais, brasileiros somos todos muito bem intencionados,
herdeiros de uma ingenuidade inventada pelos colonizadores: fomos criados para
o bem. Enquanto isso, La nave vá, tal
qual Fellini mostrou em seu navio-cenário. Não raras vezes o cérebro migra para
o estômago nauseado, como nos mostra Cronenberg em Videodrome, cujo ator vê
romper de seu ventre uma tela de televisão e quando em outro filme o personagem
dedetizador se alucina cheirando baraticida. Estamos sempre matando algo, em especial a
curiosidade de nossas crianças, esmagada como uma barata descuidada. Coitadas
das crianças. A gente vê quando viram adultos – como sofrem as pobrezinhas. Mas
deixemos que cineastas e pedagogos briguem com seus próprios fantasmas. Homens
comuns como nós, que sabemos ser a morte inevitável, gastamos nosso tempo
tentando esquecer e por isso somos racionais conscientes. Uma nobre espécie,
nesse mundo cheio de animais. Cérebros distintos percebem realidades distintas
(Dona Dica do meu interior mineiro me dizia calejada de vida: minino, cada
cabeça um mundo; quem num tem bunda num senta no morro). Curiosamente, há pelo
menos uma semelhança, diria até um padrão: alguns já disseram que em alguma
noite sonharam estar voando. Sorry, amostragem insuficiente. Cazzo! Nem o
festejado e contestado psicanalista austrogermânico conseguiu sequer esboçar o
que poderiam cada um desses universos particulares de giros e circunvoluções.
Mas as bactérias ignoram nossas angústias, querem é matéria orgânica! Tá, os
neurônios funcionam em redes, tá bom: e daí? Psicólogos não passam de
adestradores de redes de cérebros rebeldes e cansados. Muitos criticam, mas na
prática todos ficam com Pavlov e Skinner. Poucos têm paciência para considerar
as diferenças. Houve quem dissesse que a teoria psicanalítica não avança, pois
o profissional não ouve quem narra. Talvez, aflito, queira é colocá-lo em uma
das gavetinhas construídas a partir de labirintos percorridos por alguns
ratinhos que abrem portinhas ao som de sineta.
Alguns
animais são taxados de imbecis, apenas pelo seu semblante. Girafa e boi, por
exemplo. Com quem estão sendo comparados senão a nós próprios, ou melhor, a
imagens que fazemos de nós? Por que o preconceito é inevitável? Seria uma forma
defesa? Ou a preguiça de considerar a diferença, a diversidade de
comportamentos. Não é raro rotularmos uns e outros que lembram a forma e
comportamento de animais: bisonho, preguiçoso, porcalhão, bunda de ganso,
papagaio de pirata, avacalhado, sapo boi, ruminante, emburrado, macaco velho,
bode velho, corujão, urubu de lixão, lesma. Enfim, a lista pode tornar-se
infindável nessa pátria peculiar. Além de Freud que procurou investigar o
obscuro lado de ser humano, outros nos mostraram que o mundo não é cor-de-rosa.
Marx, cujo caráter científico de seus escritos foi contestado pelo epistemólogo
Popper, mostrou como o capitalismo poderia vicejar; entregou o ouro e o
capitalismo esperto aumentou e sobrepujou os ideais nunca cumpridos de um
socialismo supostamente libertário. Darwin nos mostrou que a natureza romântica
é áspera. Carnificinas por meio de bandos sanguinários ocorrem a todos instantes.
Se ficar o bicho come... Não há almoço de graça, nos alertou o pai da ecologia
e evolução. Também não é possível dois ocuparem o mesmo lugar no espaço: um
mata o outro ou fica doido e mata quem não tem nada a ver. O protoplasma é
irritável. Basta que alguém se encoste à gente prá dar choque. Só vale encostar
se for para ganhar algo. Aí é tolerável. A natureza humana se traduz em
custo-benefício. O famoso experimento de superpopulação de ratos em gaiolas. A
aglomeração causa vários tipos de transtornos mentais em ratos apinhados, mesmo
que tenham espaço adicional, comida e água farta. As bactérias fazem festa. São
como urubus, esperando. Li outro dia que Einstein tinha derrubado Newton; um
verdadeiro ultraje à memória do criador do cálculo, se não me engano diferencial,
seja que diabos isso possa significar. Desconhece o autor de tamanho disparate
que o mundinho nosso ali da esquina funciona de acordo com previsões de
equações newtonianas simples. Einstein não foi necessário para o homem chegar à
lua. Mas chegar lá prá fazer o que? Sei não sô, talvez com quase certeza eu
seja muito ignorante. Mas o físico alemão (como tem alemão prêmio Nobel!) nos
contou que o universo é curvo, que há buracos negros à nossa espreita; nem as
bactérias escapam. Buraco negro! Já pensou mencionar isso num boteco cheio de machos?
Leva porrada de todos os lados! Enche-me o orgulho de ter um cérebro, mas para
quê? Se for para passar tempo, tudo bem, mas para quê? Para nos sentirmos mais
felizes? Mais felizes para que? Somos infelizes? Ou devemos aceitar que
nascemos infelizes e incapazes de alcançar a felicidade plena? Acho que as
bactérias ignoram isso tudo. Crescer e reproduzir, assim funciona a natureza
cruel, dura, insensível e antiética (acalmem-se psicólogos, sociólogos e
antropólogos, não é ainda o fim do mundo e a natureza humana é especial...). O
que tentamos dizer na maioria de nossos discursos inúteis? Que é dureza
carregar o fado cotidiano? No íntimo da fronha cada um de nós sabe sobre a sua
estrada. Que ao acordar precisamos pentear os cabelos e ensaiar qual será nossa
expressão facial para aquele dia. Se for segunda-feira, dizem que é pior. E as
bactérias, o que fazem à noite quando todos dormem?
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