quinta-feira, 13 de outubro de 2016

BACTÉRIAS PENSAM? Ensaio sobre a mediocridade



Rogério Parentoni Martins


Poderíamos imediata e soberanamente, com certo ar de irritação, responder: Ora, que pergunta! Claro que bactérias não pensam; bactérias naturalmente (quando se usa a palavra “natural” acaba-se o diálogo, parece que tudo foi resolvido) não pensam; é óbvio que bactérias não pensam, pois não têm cérebros. São formas de vida primitivas, que evoluíram há bilhões de anos, mas não pensam. Mas embora não pensem têm preferências alimentares, senso de orientação, inclusive magnético, estratégias e táticas de sobrevivência sob as piores condições ambientais em todos os cantos do planeta, mas não pensam: o que elas fazem é trivial, resultado da seleção natural, apenas.  Não se esgotam aqui as possíveis denegações sobre o estado apedeuta das bactérias, inclusive os que lhes reconhecem características que lhes permitem ser panglobais: onde houver a mínima quantidade de matéria orgânica lá estarão.  

Por meio da abordagem socrática-aristotélica poderíamos admitir sem dificuldades que só seres cerebrados pensam. Barata tem cérebro, logo pensa. Barata não tem cérebro, alguém diria, apenas um nódulo neural ou caroço situado na região dorsal interna da cabeça. Um emaranhado de neurônios, que fazem as baratas serem mais notadas e temidas que cada um de nós. Elas, similar às bactérias, são primitivas que se distribuem por todo o planeta, passeiam em shoppings, em cruzeiros e voos transoceânicos. Barata comum caseira, nome científico, Periplaneta americana Linnaeus, 1758. Não têm pedigree. Bactérias têm, mas não distinguem entre classes sociais e ainda pegam carona nas baratas. Francis Bacon, racionalista e súdito da rainha, em 1700 e algumas dezenas, resolveu testar estatisticamente se maior ou menor mortalidade existiria entre crianças nascidas em famílias reais do que entre as dos súditos plebeus. Consultou os registros de mortalidade dos primeiros e segundos. Morriam mais crianças nascidas em palácios de famílias reais cheios de baratas, do que o contrário. Concluiu que o poder da reza cotidiana dos súditos, pela vida longa dos primeiros, não surtia o efeito esperado. A não ser que a maioria dos súditos não rezasse. O que seria inadmissível. Gostaria saber o que foi feito de Francis após esse estudo. Ninguém sabe, só as bactérias.

Quem tem cérebro teria mais dificuldade para sobreviver a mudanças ambientais drásticas? Ora, que pergunta absurda! Absolutamente! Quem tem cérebro traça planos, estratégias capazes de solucionar qualquer tipo de problema, por meio de criatividade e inventividade. Basta observar como a criatividade humana se expande por todo o planeta...

Um leão ou uma girafa teriam facilidade de viver no deserto de Atacama? Eles têm cérebros, ou não deveríamos chamar a massa que se aloja no interior de seus crânios, cérebro? Talvez multinódulos agregados, mas não cérebros; girafas, especialmente, parecem não tê-los. E pensar que há baratas que vivem exclusivamente associadas a leões e, ainda a serem descobertas, espécies de bactéria associadas a girafas e preguiças. Disse um ecólogo evolucionista que a evolução dos mamíferos e “nosotros” só foi possível devido à associação com microrganismos. Esse interacionismo não faz sentido ao senso comum, que nunca se lembra de bactérias, sequer quando tem urgência intestinal. No início do século 20, uma senhora acompanhada de sua mucama, perguntava no armazém do português: O senhor tem vaso côncavo para necessidades noturnas? Minha imaginação ficcional interpreta a suposição que somos mais microorganismos que o resto: se todos os microrganismos que vivem em nosso corpo fossem de uma só vez eliminados, nossas estruturas moles – inclusive o cérebro – se derreteriam como o excesso de tinta fresca em um quadro recém-pintado. Não passaríamos de um borrão. Dr. Dráuzio Varela adverte: “estamos sempre correndo riscos à medida que tomamos doses cavalares de antibióticos e favorecemos cepas de bactérias resistentes que também podem nos transformar rapidamente em borrões ou, tecnicamente, matéria orgânica semitransformada”. Mas a outra dele foi magistral! Escreveu um artigo em jornal ensinando-nos a fazer cocô para evitar hemorróidas. Sim senhor! E ainda disse que privada não é biblioteca. Por essas e outras que amo nosso país. A brevíssima aventura humana sobre a terra é um sonho evolutivo que poderá se esvanecer rapidamente, mesmo com toda nossa inventividade, arrogância e sabendo fazer cocô. Se o destino de 99% das espécies que até agora existiram foi extinguir, quanto tempo haverá ainda para aumentar a longevidade da população, desmatar florestas para virar bois e desfrutar as novas tecnologias engendradas em cavernas modernas hipoalergênicas? Muito tempo, diriam os otimistas, que se consideram imortais. O que nos diriam as bactérias sobre a ética, respeito e solidariedade? Obviamente nada, pois não pensam e seu senso ético é magnético apenas. Aliás, abundam entre nós os que carecem de ética; nesse aspecto são indistinguíveis das bactérias, ora não são tão íntimos? Os fins justificam os meios (coitado do Maquiavel, que não deve ter dito isso, morreu pobre e exilado por causas dos políticos de sua época). Ora todos querem melhorar de vida, não é? O discurso politicamente correto é o de que todos têm iguais direitos e devemos melhorar de vida. No Ceará, um político falou que ia botar privadas em casas de pobre. Dr. Drauzio aplaudiu a nobre iniciativa. O político deu ao dinheiro destino “desconhecido”. Resultado: os coitados ainda estão fazendo no mato e se limpando com folha de bananeira. Até mesmo a celebrada moral kantiana derrapa quando o filósofo alemão afirma: “Fiat iustitia, pereat mundus” (faça-se justiça mesmo que o mundo se phôda). A citação latina e respectiva tradução de “chupei” do colunista da folha Helio Schwartsman, na qual não havia a palavra de baixo calão. Trotsky, aquele que disse que a revolução começa na escola, tem um monte de fãs em nosso país que o festejam mensalmente. O festejado disse ser legítimo assassinar, conspirar e etc, mas nunca ser infiel ao partido. Não sei de onde “chupei” isso, mas não foi da capitalista Wikipédia. O próprio foi transformado por meio de uma picaretada que lhe furou o crânio. As bactérias se empanturram de tanta ideologia...

Olhe, olhe! Como se diz no Ceará: encerre definitivamente essa prosa ridícula, posto que medíocre: só homens, mulheres e crianças têm cérebros verdadeiros. Alguns melhorzinhos são cópias melhoradas dos que têm as esponjas e estrelas do mar. Mas apenas crianças os têm infantis? Sei não... Julgam saber e garantir os estudiosos de anatomia comparada que o verdadeiro cérebro, o cérebro nobre, evoluiu a partir de protocérebros, cérebros rudimentares, ou recuando ainda mais no tempo, evoluiu de criaturas descerebradas semelhantes às bactérias atuais. Uma geleia geral. Seria uma grande ofensa, afirmar que evoluímos do cocô de bactérias? Isso não sei, mas que não sabemos fazer isso Dr. Varela garante.

Para que recuar e olhar o passado se o que mais nos interessa é o progresso? Historiadores defendem o assar de suas sardinhas afirmando que olhar o passado é necessário para evitar erros futuros. De jeito algum, o passado só serve para os historiadores não passarem fome. E o presente? Vivemos do passado, presente ou futuro? Acho que dos três e de nossos desejos. Muitíssimos aplaudem emocionados as conquistas de nossos nobres cérebros. O que é a ciência, professor! Não nos permitimos em público declarar um da nossa espécie “burro”, isento dos raciocínios mais elementares. O que fazemos farta e impiedosamente à sorrelfa. Nossos cérebros nobres nos fazem cavalheiros de perucas, punhos de renda e meneios que circulam por salões vienenses fofocando ao som de Mozart.

Nossos cérebros tudo nos permitem. Não há limitações ao ato de pensar, será? Penso o que quero? Talvez, mas falar o que penso não é bom para os que governam e pode causar depressão em nossos amigos... Nossa nobre causa é a de sobreviver e reproduzir. Aliás, o cérebro evoluiu não foi para isso? Ou para dormirmos dentro de uma barrica e cuspir no prato que lhe servia comida, como o fazia Diógenes, o cão. Aquele da lanterna, que procurava um homem honesto. Pirado: botou fogo na casa e foi dormir dentro de uma barrica. Aliás, para que os gregos faziam barricas? Tenho uma hipótese inspirada na idade média. Adivinhem vocês que são inteligentes...

Sobreviver e reproduzir não são de fato o que a grande maioria de nós faz? Ademais, brasileiros somos todos muito bem intencionados, herdeiros de uma ingenuidade inventada pelos colonizadores: fomos criados para o bem. Enquanto isso, La nave vá, tal qual Fellini mostrou em seu navio-cenário. Não raras vezes o cérebro migra para o estômago nauseado, como nos mostra Cronenberg em Videodrome, cujo ator vê romper de seu ventre uma tela de televisão e quando em outro filme o personagem dedetizador se alucina cheirando baraticida.  Estamos sempre matando algo, em especial a curiosidade de nossas crianças, esmagada como uma barata descuidada. Coitadas das crianças. A gente vê quando viram adultos – como sofrem as pobrezinhas. Mas deixemos que cineastas e pedagogos briguem com seus próprios fantasmas. Homens comuns como nós, que sabemos ser a morte inevitável, gastamos nosso tempo tentando esquecer e por isso somos racionais conscientes. Uma nobre espécie, nesse mundo cheio de animais. Cérebros distintos percebem realidades distintas (Dona Dica do meu interior mineiro me dizia calejada de vida: minino, cada cabeça um mundo; quem num tem bunda num senta no morro). Curiosamente, há pelo menos uma semelhança, diria até um padrão: alguns já disseram que em alguma noite sonharam estar voando. Sorry, amostragem insuficiente. Cazzo! Nem o festejado e contestado psicanalista austrogermânico conseguiu sequer esboçar o que poderiam cada um desses universos particulares de giros e circunvoluções. Mas as bactérias ignoram nossas angústias, querem é matéria orgânica! Tá, os neurônios funcionam em redes, tá bom: e daí? Psicólogos não passam de adestradores de redes de cérebros rebeldes e cansados. Muitos criticam, mas na prática todos ficam com Pavlov e Skinner. Poucos têm paciência para considerar as diferenças. Houve quem dissesse que a teoria psicanalítica não avança, pois o profissional não ouve quem narra. Talvez, aflito, queira é colocá-lo em uma das gavetinhas construídas a partir de labirintos percorridos por alguns ratinhos que abrem portinhas ao som de sineta.
       Alguns animais são taxados de imbecis, apenas pelo seu semblante. Girafa e boi, por exemplo. Com quem estão sendo comparados senão a nós próprios, ou melhor, a imagens que fazemos de nós? Por que o preconceito é inevitável? Seria uma forma defesa? Ou a preguiça de considerar a diferença, a diversidade de comportamentos. Não é raro rotularmos uns e outros que lembram a forma e comportamento de animais: bisonho, preguiçoso, porcalhão, bunda de ganso, papagaio de pirata, avacalhado, sapo boi, ruminante, emburrado, macaco velho, bode velho, corujão, urubu de lixão, lesma. Enfim, a lista pode tornar-se infindável nessa pátria peculiar. Além de Freud que procurou investigar o obscuro lado de ser humano, outros nos mostraram que o mundo não é cor-de-rosa. Marx, cujo caráter científico de seus escritos foi contestado pelo epistemólogo Popper, mostrou como o capitalismo poderia vicejar; entregou o ouro e o capitalismo esperto aumentou e sobrepujou os ideais nunca cumpridos de um socialismo supostamente libertário. Darwin nos mostrou que a natureza romântica é áspera. Carnificinas por meio de bandos sanguinários ocorrem a todos instantes. Se ficar o bicho come... Não há almoço de graça, nos alertou o pai da ecologia e evolução. Também não é possível dois ocuparem o mesmo lugar no espaço: um mata o outro ou fica doido e mata quem não tem nada a ver. O protoplasma é irritável. Basta que alguém se encoste à gente prá dar choque. Só vale encostar se for para ganhar algo. Aí é tolerável. A natureza humana se traduz em custo-benefício. O famoso experimento de superpopulação de ratos em gaiolas. A aglomeração causa vários tipos de transtornos mentais em ratos apinhados, mesmo que tenham espaço adicional, comida e água farta. As bactérias fazem festa. São como urubus, esperando. Li outro dia que Einstein tinha derrubado Newton; um verdadeiro ultraje à memória do criador do cálculo, se não me engano diferencial, seja que diabos isso possa significar. Desconhece o autor de tamanho disparate que o mundinho nosso ali da esquina funciona de acordo com previsões de equações newtonianas simples. Einstein não foi necessário para o homem chegar à lua. Mas chegar lá prá fazer o que? Sei não sô, talvez com quase certeza eu seja muito ignorante. Mas o físico alemão (como tem alemão prêmio Nobel!) nos contou que o universo é curvo, que há buracos negros à nossa espreita; nem as bactérias escapam. Buraco negro! Já pensou mencionar isso num boteco cheio de machos? Leva porrada de todos os lados! Enche-me o orgulho de ter um cérebro, mas para quê? Se for para passar tempo, tudo bem, mas para quê? Para nos sentirmos mais felizes? Mais felizes para que? Somos infelizes? Ou devemos aceitar que nascemos infelizes e incapazes de alcançar a felicidade plena? Acho que as bactérias ignoram isso tudo. Crescer e reproduzir, assim funciona a natureza cruel, dura, insensível e antiética (acalmem-se psicólogos, sociólogos e antropólogos, não é ainda o fim do mundo e a natureza humana é especial...). O que tentamos dizer na maioria de nossos discursos inúteis? Que é dureza carregar o fado cotidiano? No íntimo da fronha cada um de nós sabe sobre a sua estrada. Que ao acordar precisamos pentear os cabelos e ensaiar qual será nossa expressão facial para aquele dia. Se for segunda-feira, dizem que é pior. E as bactérias, o que fazem à noite quando todos dormem?

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