Rogério Parentoni Martins
Clarindo
que poderia ter sido Diógenes.
Jurisprudêncio nasceu filho de
advogado fracassado. O pai colou grau em uma dessas faculdades de esquina, com
lanchonete em baixo, farmácia ao lado e salas de aulas enfileiradas em corredor
iniciando-se ao fim de estreita escada. Qualquer rábula interiorano o superava
em conhecimento. Seus professores não escondiam a incompetência, oculta nas
tiradas em latim, provavelmente decoradas do Almanaque Capivarol, que nos tempos
de hoje ainda impressionam a alguns: Alea
jacta est, fiat lux, ex-nihilo, mutatis mutandis, Libertas quae sera tamen. Essa a mais
proferida, referente à bandeira Minas Gerais, seu estado mater. Embora achasse sonoro, usava raramente ex-libris; nunca lhe entendera o significado. Com as decoradas latinices
no colete, partiu para o pugilato laboral apenas delas munido. Se foi exitoso
em único processo, nunca se soube, tal era sua infrequência no fórum. Aparecia
uma ou duas vezes por ano, sempre alerta, para gastar seu latim com os mesmos
"piedosos" que lhe davam alguma atenção e na roda do cafezinho zombavam
dele. Dr. Clarindo fazia questão do Dr., mantido em alguns cartões de visita
encardidos, cheirando a naftalina, que nunca saíram do bolso do paletó. Não dispensava
o paletó, apesar de desfigurado, bolsos frouxos e cotovelos puídos. A
indumentária resistia precariamente desde a formatura, quando o recebeu de um
tio, que ainda acreditava em seu sucesso, e dissera tê-lo usado apenas única
vez. Foi o único paletó em toda vida do Dr. Clarindo; escovado, com antiga
escova de sapato já meio calva, para retirar quinzenalmente a poeira acumulada nas
percorridas léguas semanais. Tentou vender caixões sob medida de lar em lar;
todas infrutíferas tentativas. Como era época pré-Google, colocava o sustento à
mesa, oferecendo de porta em porta a Enciclopédia Barsa e bilhetes da loteria
mineira. Gostava repetir que a "mineira só dá para mineiros", sem
maldade alguma, sequer quando a substituíram por "mineira só sai pra mineiro".
Alguns que o recebiam à porta, se impressionavam com a erudição demonstrada ao
citar as expressões do Lácio, herdadas dos luminares do direito civil de sua
faculdade. Não era daqueles com vocação nata para corrupto; julgava-se
imaculado, o homem mais honesto de todos os tempos; o que Diógenes procurava
com a lanterna à óleo de baleia. Soubesse disso, certamente trocaria de nome ou
adicionaria o do filósofo ao seu: Dr. Clarindo Diógenes Pires. De fato era um
homem simplório, ingênuo, acreditava nos políticos, características
geneticamente herdadas da mãe e que Jurisprudêncio também recebeu. Sonhava Dr. Clarindo
com viagem a Paris, desde o dia em que folheava a Barsa, que nunca de fato lera,
e soubera que Paris era a Cidade Luz. Não sabia o que significava, mas a
imaginação o levou a cenários absurdos em que misturava idade média com o
século das luzes, que alguma vez ouvira mencionar em uma das aulas de direito,
talvez de filosofia. Mesmo que soubesse seria impossível alguém constatá-lo: se
perguntado, responderia apenas entoando as expressões latinas comezinhas.
Apesar da indigência intelectual e vida quase miserável, Dr. Clarindo era
otimista tão irrefreável como Cândido de Voltaire. Acordava sempre com a mesma
disposição proferindo: sol lucet! Até
mesmo em dias nublados: sol semper lucet!
Inesperada sensibilidade poética, foi-lhe desvendado por Jurisprudêncio após a
morte do pai: vários delicados poemas, escondidos por vergonha de seu português,
que de alguma forma suspeitava limitado. Se soubesse latim, os escreveria nessa
língua decretada morta. Jurisprudêncio orgulhava-se do pai; organizou os poemas
e os publicou em modesta brochura, tiragem de apenas 20 exemplares,
distribuídos na praça da Liberdade em uma manhã de sol. Apenas dois exemplares
sobreviveram: o do filho e aquele que chegou-me à mão por meio de um amigo. O
título deu-lhe singelamente o filho: Gotas poéticas. De todos, o poema que mais
me tocou transcrevo, confirmando a autoria do poeta, cujo pseudônimo era Cícero
Pires:
Ventos recortam no céu
Nuvens de versos rurais.
Carneirinhos pulam sonhos,
Corujas espiam
Estrela fulgurante.
Como pode ser tão só
Um céu tão brilhante?
A morte e
sepultamento foram discretos como foram seus poemas. No velório, um amigo de Jurisprudêncio,
auxiliar de almoxarife da prefeitura, tão ou mais discreto que o falecido.
Ambos em silêncio, apenas velando o corpo sem alma. No sepultamento houve maior
presença. Após cobrir o caixão de terra, o coveiro, respeitosamente, parou
alguns minutos, de olhos cerrados e cabeça inclinada em direção ao túmulo. Não
que soubesse algo sobre o poeta, mas o fazia em todos sepultamentos, quando
ficava só, antes de fechar os portões do cemitério, diga-se independentemente
da posição social do falecido. Talvez pensasse: "todos os mortos ficam na
mesma posição" Assim, Dr. Clarindo cairia no esquecimento, mas não como
Cícero Pires, gravado nas duas cópias sobreviventes da brochuras poéticas que
sobreviveram.
Jurisprudêncio
Pires, auxiliar de escritório
Jurisprudêncio era o pai outra vez. Pensara
em cursar direito, mas terminou o ginásio e obteve emprego de auxiliar de
escritório em uma firma de atacado. Essa firma vendia de tudo: penicos,
amarrados de ferradura, barricas de soda cáustica, cueca samba canção, velas,
latas de biscoito Confiança, rapaduras, resmas de papéis para escritório,
celofane, cadernos escolares com ursinho na capa, fósforos Fiat Lux e palitos
Gina. Desconhecia Jurisprudêncio as evidências fósseis da existência de palitos
utilizados pelos Neandertais na higienização dos dentes. Lembro-me apenas desses
itens de uma imensa lista, a julgar pelo enorme galpão, onde era empilhada a
mercadoria. Rigorosamente, às sete, Jurisprudêncio estava na porta da firma à
espera que abrisse. Cumprimentava quem encontrasse com inaudível bom dia e se
dirigia à pequena mesa, cheia de notas fiscais, cadernos de lançamento de
despesas, vendas e impressos avulsos para depósito do dinheiro ou cheques. Só
saia no horário de serviço para satisfazer necessidade fisiológica premente, ou
quando a cigarra anunciava horário de almoço e fim de expediente. Viveu em
edícula alugada pela dona que morava na casa principal. A senhoria nunca ouviu
barulho que de lá viesse, desde o primeiro dia de aluguel até o passamento de
Jurisprudêncio, em uma tarde qualquer, após 30 anos de aluguéis sempre honrados
no dia 5 de cada mês.
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