quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Pau de Jumento

Rogério Parentoni Martins


Maria fumaça bufava como toda quarta feira seis da tarde. Ela quinze, eu 17. Ela dentro, eu fora. Nunca deveria ter ido à Estação de Ferro Leopoldina, em Ponte Nova, Minas Gerais. Ano não importa, perdido tá no passado, envolto em neblina do rio Piranga e na fumaça da chaminé do trem de ferro abastecido à lenha. Nunca devia ter ido à despedida. Adolescente não despede. Chateia, chora, fica com raiva, mas pega logo outro rumo.
                Os homens que viajam de maria fumaça usam sobretudo branco, nem tanto, cinza de fumaça, de comprimento na metade das canelas. As fagulhas da chaminé da máquina queimariam a roupa domingueira e atrapalharia a triunfal chegada ao Rio de Janeiro. Capital na época, homem tinha que ser de terno e mulher-esposa de costume sóbrio com barra na panturrilha, sapato social salto Luís quinze; às vezes o chapéu feminino que realçava o rosto era bem discreto; em alguns aqueles penachos no cucuruto. Nada de decote ou saia no joelho. Isso era coisa das mulheres de vida fácil, que os maridos comiam às quintas, na zona, religiosamente.
                Sim, o padre sabia, mas não pregava sermão nos abastados da cidade; para eles apenas: perderia o dízimo, os leitões a pururuca, os lombos assados, o arroz de forno com queijo ralado e petipoá. Pobre ouvia cada uma!... Muito tempo mais tarde arrependi de não ter virado padre de paróquia do interior. Desses lascivos e glutões que não deixavam nenhuma beata pro bispo, só as feias, vesgas de ancas curtas e pernas tortas. Se chegava no confessionário, era "ripa na chulipa!". Fecha os olhos, minha filha, fique de quatro como ovelhinha, abaixe a calcinha: o Senhor vai te penetrar. Já com o membro inteiramente aconchegado, as mulheres suspiravam: Glória ao Senhor, o Senhor é meu pastor. O cajado do pastor pastoreando as ovelhinhas... Diziam os padres apenas desse modo ser possível reforçar a fé das mulheres no Senhor e evitar que pecassem. Pau de padre era benzido, pensavam as beatas. Eram conhecidos no interior de Minas os filhos de padres, meninos ou meninas sérias de terço e bíblia na mão. Os meninos machos treinando prá padre; as meninas fêmeas prá beatas ou freira. Puta num entrava na igreja matriz, ouvia missa de fora. Os padres gays pedófilos chamavam os meninos gordinhos de bunda grande: cavalim, cavalim prá ganha santim. A única preocupação dos padres era Deus. Você acreditaria que todo padre acredita em Deus? Inocente! Deus é útil, apenas. Prá que fui ler "Velhice do Padre Eterno" de Guerra Junqueiro, prá quê, gente? Cismei com padre depois da leitura. Quando mineiro cisma, tem jeito não: empaca igual mula arisca quando vê bicicleta. Mas sempre é tinhoso, cigarrim de palha, cuspe de lado e sorrisim desses curtim para não dar muito cabimento. "Minino num arreganha as canjica prusotro", ouvia sempre.
                Hoje me lembro apenas do aceno de luva branca e da coluna de fumaça dobrada pelo vento. Aceno defumado pensei na época e me lembrei das linguiças penduradas sobre o fogão de lenha. Leva quinze dias prá defumar. Queijo prá curar leva mais. Tem que tampar com pano de prato: moscas aos magotes. Moscas mineiras não dispensam um queijim meia cura. Para pão de queijo o dito tem que tá bem curado, bom prá ralar Também, onde já se viu chiqueiro perto da cozinha com janela sempre aberta prá fumaça sair. Por causa do chiqueiro, vivia de bicho de pé que mãe tirava com agulha de costura.
                Mal o defumado sumiu na primeira curva, já pensava na zona. Dezessete no quengo é hormônio prá mais de litro! Se bubiar, sai pelo ouvido, igual jato dágua comprimido ou pinto de minino mijando. Aqueles pinto com bico de lamparina, que parece uma tromba mal crescida de filhote de elefante anão que dá no Siri Lanka.
                Esse trem de misturar assunto com conversa mole faz escrita render. Todo mundo tem hora pra conversa mole. Na venda então, final de tarde, junta sempre uns dez. Qual cidade do interior num tem pinguço e mintiroso? Cachaça de cabeça de alambique, daquela forte, que queima da boca ao cú. Cú tem que ter assento, já pensou cú sem assento? Cú sem acento é pescoço em francês. Já vi mãe xingando minino porque falou cú: "minino, isso é bobagera; se falar de novo, tapa na boca; deixa eu pegar!".
                Tem escritor que fala que mistura de assunto é técnica. Nunca tive, acho enrolação. Vai ver que são sinônimos. Não esqueço Rafael Bicanoa, prof. de português da Escola de Comércio, metido a latinista, mas era mesmo latrinista. Repitam alunos: "sin, prefixo= junto; ant, separado": se fosse em inglês sin era pecado e ant formiga. Anatomia, separar perna da cintura pélvica e braço da cintura escapular. Tem que desarticular que a peça sai inteirinha. Um minino mei bobão, perguntou: "professor, sintopéia é muita perna junta? Se rancá as pernas dela, ela rola?" É cada minino bobo no interior. Bobo só nas horas vagas. O senhor já ouviu falar sobre quem se faz de bobo prá viver? Mineiro é especialista na arte, principalmente quando faz negucim. Faz de bobo, mas os olhos tão correndo avaliando o produto. Tem negociação que dura mais de mês. Um ganha, mas ganha pouco. O trem é bem isprimido.
                Ela nunca me escreveu. Quando a fumaça passou já não lembrava mais da luva branca. Tava era numa meteção na zona, danada. As moças prá casar só deixavam botar nas coxas e pegar nos peitim, peitetes, peitos e peitões. Peito de todo jeito, prá todo gosto. Mas as que deixavam tinham quase certeza de ter fisgado o mão boba com anzol de surubim. Lembro que um dia correu a cidade: fulano só tinha posto nas coxas. Quem acreditou, nove meses depois ficou encabulado com o fulanim nascido. Família dava explicação, para se safar: só pode ter escorrido das coxas pra lá; se chegar na porta os rabichudim ligeiro nada até encontrar o pontim, parecido com um ovim miúdim, entrar e galá ele. Ou que quando a moça que deixou se lavava no banho ajudava empurrar os rabichudim prá porta. Garantiam que sabão num matava eles e que um médico disse: o espermatozóide, nome do rabichudim, vive 24 horas. Mas eu me perguntava: vive um dia aonde? Se a porra secar, ele num rompe, fica igual roda de carroça atolada. Tirante gêmeos, cara dum fuçim do outro, é só um mais ligerim que consegue entrar, deixar o rabim prá fora e gala o pontim. Pode ser ligeiro que for, na porra seca encrava.
                Dois carroceiros que moravam no pito, Joaquim Zoeira e Sô João mei pé ou joão pepé. O primeiro, do morro já dava prá ouvir a voz dele. Sô joão pépé, era mais quetim. Só se ouvia o rangido das rodas sem graxa no eixo rodando no paralelepípedo. Eles carregavam de tudo, poste, moirão de cerca, geladeira, máquina de costura, cama, guarda roupa, areia, tijolo, saco de açúcar, feijão, arroz... Num enjeitavam nada. Tinha pena quando o chicote lanhava os quarto do burro. O peso era muito: o bicho mastigava esforço dos grande prá puxar aquela pesaria. Dava até escuma nos canto dos beiço. Chicote no lombo: "vamo burro, vamo". As vezes, no meio do morro, tinha de parar e calçar as rodas da carroça prá esperar o burro descansar. Aí ele ganhava água e comia um bornal de capim fresco. Enquanto isso, Zoeira, ficava gritando: "aí zé da véia, já vai, né? Ô boca murcha sinuqueiro, ô caminhão de osso! Desse só via costela, carne québom nenhuma. Naquele tempo podia esperar burro descansar. Naquele tempo ninguém conhecia pressa. O dia demorava um mês prá passar quando estava em aula; nas férias era rapidim. No grupo escolar tinha Eva, servente, sorridente. Eu cantava quando ela passava: "Eva me leva, pro paraíso afora, eu tenho muita roupa, mas jogo a roupa fora". Eva ria:" ô minino danado!"

                Uma vez, os minino descobriram num pasto perto de minha casa, uma égua dadeira que só! Era só bater de leve na anca dela que encostava no barranco. Formava fila grande. Todo mundo queria ser o primeiro; o último tava lascado naquela melação. O hábito de comer animais no interior era disseminado: galinha, porca, cabra, égua. Se tivesse tatu, capivara, cutia os meninos traçava. Só tinha que ser mulher fêmea. Uma um sujeito, apesar de saber, tava tão de urgência que meteu num jumento macho e o cú travou. O jumento começou andar e o sujeito sem jeito de separar indo atrás. Só depois de passar pela igreja e ouvir o xingo do padre, o jumento relaxou. O sujeito ficou um arraso. Inchado, deu até bolha d'agua. Diziam que bosta de jumento macho era venenosa. O apelido veio logo: pau de jumento. Uns riam quando ele passava e diziam: "se o jumento resolver cobrar, cê tá nágua! Vai ver o que é bom prá tosse!" Pelo bem pelo mal, evitava passar perto de jumento macho ou fêmea, podia confundir: jumento mulher ou home é tudo igual: ele num podia bubiá. Vai que o jumento lembrava dele e começasse a zurrar. Pior se o trem dele começá a crescer e ficá pendurado que nem linguiça no defumador. Aí o povo ia deitar e rolá nele. Cidade do interior é assim: gozação corre rua!

Dois homens em dois atos

Rogério Parentoni Martins


Clarindo que poderia ter sido Diógenes.

Jurisprudêncio nasceu filho de advogado fracassado. O pai colou grau em uma dessas faculdades de esquina, com lanchonete em baixo, farmácia ao lado e salas de aulas enfileiradas em corredor iniciando-se ao fim de estreita escada. Qualquer rábula interiorano o superava em conhecimento. Seus professores não escondiam a incompetência, oculta nas tiradas em latim, provavelmente decoradas do Almanaque Capivarol, que nos tempos de hoje ainda impressionam a alguns: Alea jacta est, fiat lux, ex-nihilo, mutatis mutandis, Libertas quae sera tamen. Essa a mais proferida, referente à bandeira Minas Gerais, seu estado mater. Embora achasse sonoro, usava raramente ex-libris; nunca lhe entendera o significado. Com as decoradas latinices no colete, partiu para o pugilato laboral apenas delas munido. Se foi exitoso em único processo, nunca se soube, tal era sua infrequência no fórum. Aparecia uma ou duas vezes por ano, sempre alerta, para gastar seu latim com os mesmos "piedosos" que lhe davam alguma atenção e na roda do cafezinho zombavam dele. Dr. Clarindo fazia questão do Dr., mantido em alguns cartões de visita encardidos, cheirando a naftalina, que nunca saíram do bolso do paletó. Não dispensava o paletó, apesar de desfigurado, bolsos frouxos e cotovelos puídos. A indumentária resistia precariamente desde a formatura, quando o recebeu de um tio, que ainda acreditava em seu sucesso, e dissera tê-lo usado apenas única vez. Foi o único paletó em toda vida do Dr. Clarindo; escovado, com antiga escova de sapato já meio calva, para retirar quinzenalmente a poeira acumulada nas percorridas léguas semanais. Tentou vender caixões sob medida de lar em lar; todas infrutíferas tentativas. Como era época pré-Google, colocava o sustento à mesa, oferecendo de porta em porta a Enciclopédia Barsa e bilhetes da loteria mineira. Gostava repetir que a "mineira só dá para mineiros", sem maldade alguma, sequer quando a substituíram por "mineira só sai pra mineiro". Alguns que o recebiam à porta, se impressionavam com a erudição demonstrada ao citar as expressões do Lácio, herdadas dos luminares do direito civil de sua faculdade. Não era daqueles com vocação nata para corrupto; julgava-se imaculado, o homem mais honesto de todos os tempos; o que Diógenes procurava com a lanterna à óleo de baleia. Soubesse disso, certamente trocaria de nome ou adicionaria o do filósofo ao seu: Dr. Clarindo Diógenes Pires. De fato era um homem simplório, ingênuo, acreditava nos políticos, características geneticamente herdadas da mãe e que Jurisprudêncio também recebeu. Sonhava Dr. Clarindo com viagem a Paris, desde o dia em que folheava a Barsa, que nunca de fato lera, e soubera que Paris era a Cidade Luz. Não sabia o que significava, mas a imaginação o levou a cenários absurdos em que misturava idade média com o século das luzes, que alguma vez ouvira mencionar em uma das aulas de direito, talvez de filosofia. Mesmo que soubesse seria impossível alguém constatá-lo: se perguntado, responderia apenas entoando as expressões latinas comezinhas. Apesar da indigência intelectual e vida quase miserável, Dr. Clarindo era otimista tão irrefreável como Cândido de Voltaire. Acordava sempre com a mesma disposição proferindo: sol lucet! Até mesmo em dias nublados: sol semper lucet! Inesperada sensibilidade poética, foi-lhe desvendado por Jurisprudêncio após a morte do pai: vários delicados poemas, escondidos por vergonha de seu português, que de alguma forma suspeitava limitado. Se soubesse latim, os escreveria nessa língua decretada morta. Jurisprudêncio orgulhava-se do pai; organizou os poemas e os publicou em modesta brochura, tiragem de apenas 20 exemplares, distribuídos na praça da Liberdade em uma manhã de sol. Apenas dois exemplares sobreviveram: o do filho e aquele que chegou-me à mão por meio de um amigo. O título deu-lhe singelamente o filho: Gotas poéticas. De todos, o poema que mais me tocou transcrevo, confirmando a autoria do poeta, cujo pseudônimo era Cícero Pires:

Ventos recortam no céu
Nuvens de versos rurais.
Carneirinhos pulam sonhos,
Corujas espiam
Estrela fulgurante.
Como pode ser tão só
Um céu tão brilhante?

A morte e sepultamento foram discretos como foram seus poemas. No velório, um amigo de Jurisprudêncio, auxiliar de almoxarife da prefeitura, tão ou mais discreto que o falecido. Ambos em silêncio, apenas velando o corpo sem alma. No sepultamento houve maior presença. Após cobrir o caixão de terra, o coveiro, respeitosamente, parou alguns minutos, de olhos cerrados e cabeça inclinada em direção ao túmulo. Não que soubesse algo sobre o poeta, mas o fazia em todos sepultamentos, quando ficava só, antes de fechar os portões do cemitério, diga-se independentemente da posição social do falecido. Talvez pensasse: "todos os mortos ficam na mesma posição" Assim, Dr. Clarindo cairia no esquecimento, mas não como Cícero Pires, gravado nas duas cópias sobreviventes da brochuras poéticas que sobreviveram.

Jurisprudêncio Pires, auxiliar de escritório


Jurisprudêncio era o pai outra vez. Pensara em cursar direito, mas terminou o ginásio e obteve emprego de auxiliar de escritório em uma firma de atacado. Essa firma vendia de tudo: penicos, amarrados de ferradura, barricas de soda cáustica, cueca samba canção, velas, latas de biscoito Confiança, rapaduras, resmas de papéis para escritório, celofane, cadernos escolares com ursinho na capa, fósforos Fiat Lux e palitos Gina. Desconhecia Jurisprudêncio as evidências fósseis da existência de palitos utilizados pelos Neandertais na higienização dos dentes. Lembro-me apenas desses itens de uma imensa lista, a julgar pelo enorme galpão, onde era empilhada a mercadoria. Rigorosamente, às sete, Jurisprudêncio estava na porta da firma à espera que abrisse. Cumprimentava quem encontrasse com inaudível bom dia e se dirigia à pequena mesa, cheia de notas fiscais, cadernos de lançamento de despesas, vendas e impressos avulsos para depósito do dinheiro ou cheques. Só saia no horário de serviço para satisfazer necessidade fisiológica premente, ou quando a cigarra anunciava horário de almoço e fim de expediente. Viveu em edícula alugada pela dona que morava na casa principal. A senhoria nunca ouviu barulho que de lá viesse, desde o primeiro dia de aluguel até o passamento de Jurisprudêncio, em uma tarde qualquer, após 30 anos de aluguéis sempre honrados no dia 5 de cada mês.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Murinas Memórias


Rogério Parentoni Martins

Bolsista FUNCAP
Universidade Federal do Ceará
Departamento de Biologia


Ao contrário de Gregor Samsa, que se viu transformando em barata, o mesmo comigo não aconteceu. Sempre desconfiei desde os 3 anos que tinha muito a ver com roedores. Toda grande família, de capivara a rato pulador, esse do tamanho de uma tampa de garrafa pet, inspirava-me simpatia. Entristecia-me quando um primo era cruelmente esmagado pela trave da ratoeira, simplesmente porque não resistiu ao delicioso aroma do queijo meia cura. A felicidade de um rato e dos cidadãos mineiros é a de saborear diariamente um pedaço de queijo, feito com leite cru, sim senhor. Apenas um pedaço faz corações murinos e mineiros baterem com mais intensidade.
            A simpatia era tanta que não me importava que meus ancestrais medievais fossem considerados, mais do que as pulgas, os maiores responsáveis pela mortandade de 75 milhões de europeus de 1347 a 1356. Afinal que culpa tiveram, se a terrível bactéria era transmitida pela picada da pulga, que também sugava o sangue de meus ancestrais? É bom relembrar que àquela época a higiene era escassa nos domicílios, além da sujeira acumulada em vielas e becos.
            Ninguém é capaz de garantir que rato não se emocione, embora não chore. Eu ainda menos, dada minha condição híbrida. Não advogo a favor dos murinos ou humanos. Sempre procurei ser imparcial, pois meio rato e homem, nunca me senti à vontade para tomar partido, embora ora inclinasse para uma metade, ora para a outra, nada mais comum em naturezas em conflito. Felizmente, antes de emitir qualquer juízo de valor precipitado, conseguia retomar a posição de fiel da balança.
            Há forte argumento que os humanos universalizaram com a certeza de que não seriam contestados. Obviamente, ninguém pensa em fundamentar argumentos que possam servir contra si próprios, muito menos os murinos e os demais mamíferos rotulados irracionais. Assim taxativamente rotulados por não poderem se defender ou constituir advogado, pois aos irracionais só se concede emoção incontida. Por exemplo, ser privado da existência apenas por não resistir ao aroma de um pedaço de queijo.
            Há "irracionais" que inspiram medo, aversão ou até náuseas, murinos sem exceção. Há também os considerados sofisticados: os habitantes das correntezas dos rios, remansos e lagoas, mares, oceanos e pássaros canoros. Esses últimos são capturados pelos humanos e engaiolados para cantar. Entendo seu canto aprisionado, tristeza ou desabafo, prestem a atenção. Porém, segundo critério humano eu sou irracional quando sinto desse modo. Animais que vivem em meio líquido são considerados mais nobres que os rastejadores e outros tetrápodos. Haveria conflitos se os humanos, que se alimentam de certos animais e seus produtos, os rotulassem racionais. Isso equivaleria à antropofagia e seria motivo para deflagrar uma terceira contenda mundial, a guerra dos irracionais.

II

            Minha trajetória de rato, percebida aos sete anos, na verdade iniciou-se sete anos antes quando em meio a ninhada generosa encontrei-me sugando uma das mamas de mamãe, a qual tornou-se minha preferida e vigorosamente defendida contra as tentativas de usurpação de meus irmãos e irmãs. Não pensem que só entre os humanos há dificuldades em dividir quando se está faminto: racionais e irracionais se igualam na fúria. Dividir quando se tem muito é fácil para alguns, embora haja humanos, mesmo saciados, sempre desejando o que cabe a outros. Alguns humanos admitem que esse comportamento seja herdado de animais que os antecederam na escala evolutiva, por isso incontrolável. Até nessas horas a culpa era atribuída aos murinos e outros mamíferos que não gozavam prestígio junto aos magistrados da racionalidade. Para outros irracionais, como o urso panda e o bicho preguiça, o tratamento é benevolente. Ninguém duvidaria da mansidão de um bicho preguiça. Em sua lenta e desinteressada movimentação, alimenta-se somente de folhas e faz cocô e xixi semanalmente apenas. Faça um esforço sobre humano e imagine-se preguiça, descendo da árvore várias vezes ao dia para satisfazer as necessidades fisiológicas. Seria exigir muito desses pobres animais. Um bicho higiênico que fica confortavelmente instalado em um guarda-roupas como cabide, capaz de suportar prisão de ventre, se não é levado a uma árvore para que dela possa descer e obrar, é um pet perfeito. Eu mesmo mantive por um ano pet-preguiça fêmea, que denominei Sueli. Seu lugar de repouso era de fato o interior do guarda-roupas, dependurado como um cabide. Depois de um ano transferi sua tutela para um ex-professor de zoologia. O professor o mantinha durante o dia em uma árvore; à noite o alojava em sua biblioteca. Narrou-me o professor tê-lo encontrado morto, abraçado a um dicionário de alemão-português.
            Viver em árvores como vivem certos primatas, primos de minha meia parte humana, remete-me a Ítalo Calvino em "O Barão nas Árvores". O personagem do escritor italiano abandonou o conforto da nobre vida domiciliar e passou a viver em copas intercomunicantes de frondosas árvores. Todos o sabiam, mas raramente o viam tal a destreza do jovem barão em percorrê-las à sorrelfa. Os bichos arborícolas o tratavam com todo respeito, pois não tinha a mínima agressividade para com eles e muito menos os insetos hematófagos lhe sugavam, o que era inexplicável. Quando morreu não localizaram o cadáver. Estranhamente não se espalhou o odor putrefato da morte. Calvino, um homem elegante, nunca mencionou sobre as necessidades fisiológicas do jovem barão, sequer como obtinha a necessária proteína animal; folhas apenas não o nutririam adequadamente para que se comportasse tão solerte.

III

            Da generosa ninhada de doze irmãos apenas eu sobrevivi. O mamilo escolhido, de alguma forma, drenava a maior parte do leite cabível aos demais irmãos. A noção de igualdade de direitos e deveres deveria partir dos lares e tetas, mas não é o que acontece. Nunca me culpei por mamar mais que eles, pois como todos sabem, além de na época ser bebê rato, tenho o meu lado irracional desculpável. De Ponte Nova, zona da mata mineira onde nasci, parti para a capital dentro de mala antiga, daquelas de papelão imitando couro. No início, alojei-me em uma pensão perto da rodoviária, onde, cumprindo meu destino murino, fazia minhas refeições e necessidades, procurando urinar e defecar sempre com cuidado em lugares inacessíveis a humanos, em respeito à minha parte humana, embora a irracional me dissesse: faça em qualquer lugar. Nunca passaria à cabeça de um humano a possibilidade de existir um rato tão educado. Essa qualidade herdei de minha falecida mãe que nunca contou com meu pai para minha criação. Foi com sobremurino esforço dela que me tornei bacharel, sim senhor, bacharel em direito, não rábula.

IV

            Da infância à adolescência fui criança, ou melhor, meio criança muito observadora - qualidade necessária à sobrevivência dos murinos. Quando desejava, passava despercebido pelos humanos correndo atrás do tempo como se disputassem quem chegaria primeiro a lugar nenhum. A propósito, houve roedor, parente-longe, de hábitos saltitantes, derrotado por um quelônio em corrida sem obstáculos. Aliás, derrotado pelo corporativismo quelônico. Na noite anterior à disputa, um exército de mais de 50 quelônios se escondeu em arbustos ao longo da trajetória dos corredores. Desse modo sempre estavam à frente do pobre parente-longe. Muitos humanos aplaudem essa esperteza quelônica. Há quem diga que o caráter dos brasileiros foi moldado pela experiência e corporativismo quelônicos. Mas os brasileiros atribuem a culpa aos portugueses, que aportaram a pindorama; seguidores de Dom João VI e família, em fuga da ameaça do poderoso exército napoleônico. No entanto, há controvérsias como qualquer opinião que se profira na face da Terra. Como pronunciou precisamente conhecido filósofo alemão: não há fatos, apenas versões. Cada versão atende a interesses próprios. Fato ou versão, diz-se que brasileiros têm dificuldade em assumir responsabilidades pelos seus equívocos, em geral os atribuindo a outrem. Nascido no Brasil, o leitor duvidará sobre a formação de meu caráter. Dada minha personalidade híbrida, confesso ter sido conflituosa. Pensei em solidarizar-me com o parente longe, vilmente enganado pelo embuste quelônico. Ao mesmo tempo admiti parte de meu caráter devida aos quelônios. Por isso, sempre permaneci na dúvida como deveria agir, o que era parcialmente resolvido pelo contato mínimo necessário com humanos e murinos. A filosofia ajudou-me a refletir de forma abrangente e a repelir polarizações.

V

            Na adolescência cresceram-me bigodes e espinhas. Achei-me ridículo; revoltei-me como qualquer adolescente humano. Guinchava mais ridículo ainda, entre baixo barítono e tenor. Poderia tornar-me um castrato, préadolescentes cujos testículos eram extirpados para que mantivessem voz aguda típica nos coros de capelas e igrejas. Tal prática foi adotada a partir do Império Bizantino, 400 d.C. Os castrati existiram até 1913, quando o último deixou o coro da Capela Sistina. Embora soubesse que os castrati eram muito bem remunerados, nunca cogitaria tornar-me eunuco, mesmo que tivesse nascido no período em que a prática era comum.
            Na adolescência, adolescentes fêmeas interessavam-me, na medida da percepção de suas modificações físicas, seios, quadris, olhares instigantes. Como algumas eram chamadas gatinhas, preferi-me afastar para não tornar minha metade murina alvo de atenções e cobiças desmesuradas. Usando a metade humana livrei-me de ser considerado refeição fácil por alguma gatinha interesseira. Por isso humilharam-me humanos e murinos, pasmem-se. Achavam-me desmerecedor do orgulho das respectivas raças. Foi questionada minha virilidade, sofri bullying. Nunca tive um momento de heroísmo para ser aclamado. Nem mesmo quando salvei uma gatinha do afogamento. Ela própria tratou de esconder o fato, a fim de não dar publicidade a um adolescente com virilidade questionada. Achei melhor, pois assim não exporia minha natureza híbrida. Poderia dessa forma tornar-me objeto de interesse de algum cientista, cujo conhecimento em si, não é de interesse, mas apenas prestígio e prêmios, mesmo que fraudem trabalhos e deslealmente compitam com colegas honestos e talentosos. Ah, a natureza humana, essa natureza controversa, sempre questionável.

VI

Quando entendi a importância dos livros, era chamado "rato de biblioteca". Nada mais meio natural. Era leitor ávido. Horas a fio despendia lendo, mesmo quando o livro fosse de sofrível qualidade literária. Continha o ímpeto de roê-lo e transformá-lo em papel picado, disponível para forrar o ninho de alguma parente gestante. Muitas vezes esse ímpeto vinha intensamente. Pensava se cedesse pelo menos mais da metade dos livros da biblioteca pública teriam esse trágico fim. Aprendi História contada de várias maneiras, sempre na versão dos vencedores. Nunca acreditei em nenhuma delas, pois pensava em certa inclinação comum a felinos, a de puxar a sardinha para sua brasa, que os tornava míopes e sectários. Impérios foram assim constituídos, à base da força, escravidão, mas enaltecidos como civilizados. Nesse sentido, sentia-me mais civilizado, dado meu senso crítico e imparcialidade.
            Os felinos sempre foram respeitados, principalmente devido a seu esporte favorito: nos caçar. Sabe aquelas almofadas sobrepostas às curvadas garras desses cruéis animais quando em marcha? Permitem seu caminhar sorrateiro. Se o murino for desprovido do sexto sentido certamente não escapará das impiedosas garras. Presenciei a morte de muitos concidadãos nas garras desses algozes. Mesmo nutria uma secreta admiração pela independência que conquistaram no decurso de sua evolução. Respeito também ratos e humanos independentes e respeitosos. Meu lado murino admira os indianos, especialmente os co-habitantes com diversos animais. Alguns consideram estranha essa convivência harmoniosa, tachando-os mentalmente perturbados ou santos. Santo mesmo foi o faquir "baba, o santo que rola". Rolou 25.000 km de Nova Dehli a Bombaim, ida e volta, sempre acompanhado por fiéis prestativos. Populares dos vilarejos adjuntos ao trajeto proviam-lhe água, pouca comida e abrigo contra o mau tempo. Sabida é a independência dos faquires da quantidade de tudo. Libido? Nem pensar! O oposto de certos gurus bem alimentados que fornicam todas as mulheres de sua comunidade. Pena que morando em outro continente e de posses restritas, não pudesse viajar à Índia e acompanhar parte do rolamento do santo Baba. Se fosse apenas para ver alguém passar fome, nunca precisaria de sair do meu país. Mas minha motivação era mais metafísica que mundana.

VII

            Levei comigo o apelido de rato de biblioteca para a universidade onde cursei direito. Lá meu apetite por livros tornou-se tão aperfeiçoado quanto conhecido. Presumindo que seria superficial por ler tão rápido, levantaram suspeitas sobre meu comportamento durante as provas. O grau máximo que sempre obtinha incomodava a colegas e professores. Todos sempre de olho para tentar pegar-me em delito de cola. Soube que até faziam apostas sobre quem conseguiria o admirável feito. Admito, professores e colegas invejosos da minha capacidade. Curioso invejarem um rato. Apesar de constantemente vigiado, nenhum atingiu o intento, mas custou-me uma neurose: a cada seis meses mudava de barraco e bairro. Quando não havia mais bairro, retornava ao primeiro, confiante que ninguém mais se lembraria de mim. Dessa forma continuei o ciclo.

VIII

Novamente, minha virilidade, agora adulto, foi questionada. O contrário que acontecia a alguns adolescentes, que eram perdoados. Explico: havia sempre o argumento de que na fase inicial da adolescência o gênero é indefinido, por isso os juízes da moral eram condescendentes quando um desses adolescentes era flagrado em aprontamentos de moça. Não deixavam, todavia de adverti-lo sobre a inadequação desse comportamento considerado efeminado na vida adulta. Com um adulto é diferente: se não for macho, é sem vergonha. Os preconceitos são impiedosos para os que integram grupos marginalizados por serem diferentes apenas. Não me refiro apenas à questão de gênero, mas ao comportamento que se espera de um adulto em determinada cultura guiada por propósitos machistas ou feministas. Oscar Wilde foi para a prisão por ser homossexual. Lá escreveu De Profundis. Uma corajosa e verdadeira admissão existencial de culpa. Não por ter infringido a lei, mas por ter sido susceptível ao extremo aos efeitos da paixão. A prisão, porém, não arrefeceu seu senso crítico, sequer diminuiu o respeito dos que o consideravam um grande escritor.
            Na história da origem da moralidade acredita-se, com alguma razão, que os poderosos nas sociedades monárquicas e eclesiásticas, nobres e sacerdotes, é que resolveram serem eles detentores e exemplos da moral elevada; os pobres e ignorantes, imorais. Quando pensava sobre isso, resultado não só de minhas leituras, mas também de reflexões, me intrigava se era meu caráter híbrido que me permitia olhar com clareza e criticar os autoritarismos de quaisquer naturezas. Nem por isso, me sentia superior aos homens, sequer aos ratos. Essa dúvida me acompanhou até a morte. Mas precisaria saber disso e depois não resistir ao desejo de defender a idéia de que homens criados em laboratório com genes murinos seriam mais nobres que os homens puros? Isso não faria diferença alguma para os autoritários e déspotas, menos ainda para o homem comum preocupado com sua sobrevivência e humilhações impostas por seus empregadores. Semideuses despóticos que obrigam pobres coitados a horas de trabalho insano e lhes pagam com sobras de suas lautas refeições.
            Devo salientar minha aversão à política partidária e ao joguinho de interesses pessoais que os motivam a candidatar-se. A única coisa que me interessava era ser independente e logo concebi que se fosse professor universitário competente, quem dependeria dos produtos de minha competência seriam os reitores. Assim, sequer faria questão de lhes saber os nomes. Maria, João ou Manoel, tanto faria. Eu de fato me reconhecia independente. Até mesmo os de minha meia raça que frequentavam as bibliotecas, refeitórios, salas de aula e laboratórios de universidades, não fossem independentes, não teriam minha admiração. Nestes casos ficavam indiferentes a meu comportamento ou me consideram esnobe. Mas seguia pensando e agindo da forma que pensava. Como disse não poder viajar ao Exterior, devido a meus recursos escassos, sempre tive curiosidade para saber sobre o comportamento dos murinos de Harvard e MIT. Sequer o soube pelos livros, que nunca mencionavam sobre o comportamento de meus semelhantes cidadãos norte-americanos.

IX

            Na formatura não compareci para não me emocionar e porque só minha falecida mãe faria questão que comparecesse, para que se orgulhasse do único sobrevivente de sua ninhada. O vazio que me acometeu logo após a formatura, foi inexplicável. Em parte, pela angústia de me perguntar: e agora? Logo recuperei-me e fui aprovado no exame da ordem. Poderia agora exercer a profissão. Porém, causou-me tristeza porque nunca poderia defender outro murino. Murinicidas, em vez de serem penalizados, eram aclamados como heróis, principalmente pelas mulheres. Nunca havia indiciamento e acusação para esses heróis de donzelas sempre muito criativas na emissão de seus gritinhos de pavor.

X

            Minha humana metade pensava na morte como fatalidade para outrem, custosa e injusta para mim. Esperava de certa forma eternizar-me por meio de convencimento duvidoso. Nada mais que esfarrapadas desculpas que justificassem meu medo de morrer. Minha parte roedor não sofria essa agonia. Creia-me: é mais fácil ser rato que ser gente. Ninguém duvidará dessa verdade, até mesmo porque proferida por quem a vida inteira desfrutou de dupla personalidade.
            Às vezes o desespero me acometia como abismo do qual não se enxerga o fundo. Li Sartre, Camus, João Cabral, Guimarães, Root. Garcia Marques furtou-me horas de sono, que julgava bem empregadas, pois sentia-me especial. Mero sentimento como outro qualquer que utilizava como subterfúgio para não encarar de frente a terrível dificuldade de existir. No íntimo a verdade ecoava impiedosa, mas eu tinha os livros, jazz e filmes que me conduziam temporariamente para um mundo fictício, que teimava ser real. Sair de casa tornou-se uma dificuldade escondida com desculpas sobre a violência crescente nas grandes metrópoles e suas periferias apinhadas de sobreviventes, muitos, com razão, desesperados. As igrejas cumprindo seu papel intimidador prometia diariamente os mais abomináveis castigos àqueles que não contribuírem monetariamente para satisfazer os seculares apetites de sacerdotes parasitas. Nunca a Igreja para mim pareceu lenitivo. Ao contrário, uma casa de martírios, embustes e falsa segurança. Enquanto a vida rola, Roma assiste indiferente a miséria humana.

XI

            Falar a verdade sempre foi visto com intolerância ou grosseria nesse nosso país de pessoas melindradas. Prefiro ser intolerante que omisso. Uma decisão que coube à minha metade humana. Esse existencialismo real empurrava-me cada vez mais para livros e reflexões, até o momento que me senti incapaz de proferir uma única palavra e escrever uma única linha. Achava que meu fim estaria próximo. Com essa sensação vivi meus últimos 30 anos. Sim, dos 7, quando despertou-me a consciência da finitude aos 85 quando o esgotamento total levou-me ao CTI. Canulado, entubado, atado à vida por delgados fios, ainda era capaz de pensar. Apenas a morte suprime a consciência. Quando isso acontece, deixa um corpo inerte, rígido, paralisado pela eternidade. Se essa confissão lhe perturbar de tal modo que comece a refletir, advirto-o: estará entrando em território hostil, onde poderá voltar-se contra si mesmo e se canibalizar. Porém, acharia incomum o comportamento de privação da vontade e exposição das vísceras para abutres? Veja, já sobrevoam em vôo planado, olhos à procura do desespero. Uma carcaça humana tem um sabor adocicado, diferente das carcaças animais. Por isso, esses lúgubres seres mostram por elas certa preferência. Você desejaria que eu parasse e me voltasse a temas amenos. Não consigo, meu caro, uma vez no vórtice é impossível salvar-se. Para você é mais fácil, pois a tragédia é minha. Quando vir que a tragédia poderá ser sua, aconselho-o fechar o livro. Se tiver coragem de continuar, é porque ama o perigo ou não se importa o mínimo com sua sobrevivência e lucidez. Narrar-lhe-ei como minha lucidez foi consumida pela depressão.

XII

            Sou deprimido desde o momento que minha consciência apresentou-me o mundo. A reação foi de espanto. Nunca dela me livrei. Aquela de algo não está certo, isso é estupidez, estou boquiaberto. Vez ou outra preferiria que alguém suprimisse minha vida, pois fui muito covarde ao admitir que não tinha autonomia para fazê-lo. Incapaz de decidir se queria ou não viver. Convenhamos, isso é vida plena? Em um único mês emagreci seis quilos. Como sempre fui alto e magro, a magreza agora realçada pela depressão fez-me imagem de faquir indiano. Minha vida teria mais sentido se eu rolasse como Baba, o Santo que rola. É preciso ser um titã, mais que obstinado, para rolar 25.000 Km. Mais do que Sísifo filho de Eolo, deus do vento, e Enarete. O instinto de sobreviver predominou. Procurei ajuda de gastroenterologista que virou-me pelo avesso, à procura da razão para seu diagnóstico. Pressenti que adoraria, apesar de que negaria até a morte, em diagnosticar-me um câncer maligno. Seria sua forma de se afirmar, de mostrar competência. Não o julgo por isso, mas não houve diagnóstico algum, pois o desconforto e desespero não era físico. O gastroenterologista não tinha o tino de certos clínicos que estudam a vida inteira e ainda têm dúvidas. Um deles é que diagnosticou corretamente. O que soube quando me prescreveu potente antidepressivo. O mundo nunca havia me parecido tão colorido, tão bom de viver. Bom humor e segurança fizeram-me retomar meu trabalho. Nessa época, li o genial Pantaleão e as visitadoras. Mas evitei O Pequeno Príncipe e Meu pé de Laranja Lima. Como você deve estar quase fechando o texto, o que perturbaria minha intenção de ser bem aceito, narro como a filosofia ampliou minha sensação de impotência.

XIII

            Antes de passar à filosofia, esperei que perguntasse minha origem humana. Como não perguntou, assim mesmo lhe direi. Minha origem é multirracial, como grande parte dos brasileiros. Avós maternos italiano e ela descendente de Puris (assim apelidados por tribo rival: gente miúda, fraca, gentinha, de baixa estatura). Avó paterno mulato, ela portuguesa. Todos de famílias humildes, seja no Brasil ou Europa. Os europeus que chegaram em minha cidade, Ponte Nova, interior de Minas, migraram ao final do século XIX. Vieram tentar sorte melhor no Brasil, devido à escassez de trabalho em suas regiões de origens. Os Puris mantiveram duas aldeias em Ponte Nova e se agregaram aos portugueses em fazendas, até o século XIX, quando foram dizimados ou miscigenados. Esse foi o caso de minha bisavó. Conheci-a apenas por um retrato amarelado, mesmo assim vi que fumava cachimbo de barro. Dessa gente simples e trabalhadora originei-me recebendo valores que me acompanharam até o final. Meus pais conseguiram sobressair-se por meio dos estudos e montaram uma pequena biblioteca em nossa residência. Daí veio meu interesse pelos livros, tanto para roê-los, quanto para lê-los. Percebo seu pouco interesse por esses detalhes, que de fato mais a mim interessam. Como já havia notado que filosofia não lhe é totalmente estranha, passarei a narrar como fui influenciado por meio de leituras de certos filósofos cujos livros repousavam nas prateleiras das estantes da biblioteca da casa de meus pais.

XIV

Exceto às vezes linguagem demasiadamente rebuscada e pensamentos de difícil compreensão, a leitura de filósofos que fazem esforço para serem entendidos pode ser fonte de prazer. Reconheço que a vida agitada das grandes metrópoles pode influenciar negativamente na capacidade de concentração para realizar a leitura reflexiva que a filosofia necessita para ser compreendida. Muito mais fácil, apenas para passar tempo, é a leitura de livros superficiais de idéias e conteúdos insignificantes para o conhecimento. Infelizmente, esses livros atingem um volume de vendas muitas vezes superior à dos livros de filosofia. Apesar de não poder afirmar com um grau razoável de certeza, suspeito que possa ter sido uma das exceções. Desde a adolescência tenho um hábito regular de leituras que de certa forma incentivou-me a escrever poemas e contos curtos. A maioria escrita naquela época era de incipiente qualidade literária. Creio que melhorei na vida adulta, principalmente quando intensifiquei leituras em filósofos cujas idéias me atraiam. Houve um período no qual escrevi apenas textos científicos, cuja linguagem especializada e hermética é compreensível apenas para os iniciados. Ortega Y Gasset critica o especialismo do conhecimento: Aqueles que sabem muito de pouco e se mostram arrogantes nessa pequenez. Quando percebi essa limitação, escrevi alguns textos de divulgação científica, a fim de aperfeiçoar a qualidade dos escritos para que um leigo interessado pudesse entender um tema científico. Quinzenalmente, por dois anos, escrevi em um jornal da cidade sobre temas variados, inclusive filosofia, em um espaço de 45 linhas. Alguns desses artigos foram com a colaboração de colegas de diversas áreas do conhecimento. Essa iniciativa fez com que prestasse atenção em um universo de conhecimento mais amplo. Dessa época, até exato momento, meu interesse pela filosofia foi-se ampliando significativamente com o incremento de leituras sobre o tema. Para que essa narrativa não se torne enfadonha, digo-lhe que o prazer que tenho em ler, compreender e escrever ocupa boa parte de minha vida. Logo percebi que refletir intensamente e conseguir exprimir algo não corriqueiro exige episódios de total abstração dos rumores da agitada vida moderna. Acostumei-me a escrever escutando jazz. Sempre interpretei a linguagem do jazz expressando liberdade. De outro modo, se não me entediasse a vida do campo, viver em algum lugar onde o ritmo de vida é ditado pelo canto dos pássaros poderia ser favorável à minha leitura e escrita. Porém, sou um rato urbano de frequentar grandes bibliotecas públicas e livrarias, raras em nosso país. Existem apenas em metrópoles, por razões óbvias. Para finalizar, pois noto certo desconforto em seu semblante, apenas digo ser muito difícil para mim viver sem filosofar, o que para muitos, espero não para o senhor, poderá ser considerado uma vida fútil, sem efeito prático algum. Não tenho interesse algum em provar nada para quem pudesse ter essa impressão sobre a importância da filosofia. Seria inútil. Além disso, cada um vive do jeito que gosta ou que é obrigado; neste último caso apenas posso lastimar.

XV

Nunca me atraíram narrativas longas, detalhadas por achá-las entediantes. Não consegui ler Proust até o fim, sequer Ulisses, na excelente tradução de Antônio Houaiss. Ulisses conseguir ler as primeiras 50 páginas, enquanto convalescia de uma cirurgia para corrigir uma hérnia inguinal. Minha mãe humana se orgulhava de ler todos os livros que lhe caiam nas mãos até o fim, mesmo que fossem entediantes. Quando lhe dei Cadernos de Lanzarote, de Saramago, porque só consegui lera as primeiras páginas, descobri por acaso que minha mãe saltava várias páginas. Questionei-a, mas não deu o braço a torcer: salto porque já sei o que ele vai continuar falando.   Grande Sertões o li três vezes. Foi traduzido ao alemão com o título Wildnist. Deixo claro que não conheço a língua alemã. Sou monoglota de pai e mãe. As poucas aulas em alemão que frenquentei não me motivaram a continuar. Por força de ler textos científicos aprendi um inglês limitadíssimo. Quando fui aos estados unidos e tive que proferir uma palestra, deu-me uma cólica que suportei bravamente durante 50 minutos, sem saber o que falei. Mas respondi diversas perguntas. Antes de iniciar a palestra, para tentar ficar mais a vontade usei o expediente de contar uma piada a estilo americano: quando cheguei aqui não sabia falar coisa alguma; agora sei falar batata frita. Como esperava, todos riram e isso tornou o ambiente menos hostil e a cólica mais suportável. Nunca mais cometi desatino semelhante. Sequer procurei aperfeiçoar meu inglês, mesmo assim sobrevivi razoavelmente na academia por 37 anos. Aposentei-me porque estava achando o ambiente acadêmico muito pouco estimulante e competitivo. A partir daí vivi filosofia até o ultimo instante de vida.

XVI

Disse uma vez que o escritor só consegue terminar de escrever um livro quando sabe o fim de antemão. Ontem, eu sabia qual seria o fim desse escrito. Hoje não mais sei. Mas não posso terminar abruptamente, o que seria aconselhável, para que os leitores não perdesse a paciência. Por isso decidi escrever mais algumas linhas, que garanto poucas. Vou poupá-lo desse dissabor, mesmo sabendo que é disciplinado o bastante para encerrar a leitura sem chegar ao final.
            Acho muitos filósofos chatos e dissimulados. Muitos querem mostrar-se humildes, mas cedo ou tarde a arrogância aflora sem hesitação. Quando isso acontece, conhecemos seu verdadeiro caráter: para não se mostrar deficientes, esquivam-se de perguntas inteligentes usando o asqueroso argumento de autoridade, muitas vezes humilhando os alunos que colocam em questão sua honestidade intelectual. O filósofo judeu-tcheco, Vilém Flusser, que viveu 30 anos no Brasil, escreveu em 1967 para o Estado de São Paulo um artigo que me fez muito sentido. Designou tratadista àqueles filósofos que não se mostram no texto. São intelectualmente honestos, mas existencialmente desonestos. Ensaístas os que não têm medo de se mostrar humanos e são intelectualmente honestos, como Nietzsche foi. Apenas para ficar nos alemães, Kant contrastava a Nietzsche: é perfeito exemplo de tratadista. Você deve estar se perguntando, com razão, o que será que esse murino pensa que é? Minha situação é tão indefinida que nem sei se sou filósofo. E para pelo menos ser intelectualmente honesto encerro essa narrativa, incompleta como qualquer outra; prometo que não terá seguimento. Evado-me como rato que também sou: desculpavelmente irracional.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

BACTÉRIAS PENSAM? Ensaio sobre a mediocridade



Rogério Parentoni Martins


Poderíamos imediata e soberanamente, com certo ar de irritação, responder: Ora, que pergunta! Claro que bactérias não pensam; bactérias naturalmente (quando se usa a palavra “natural” acaba-se o diálogo, parece que tudo foi resolvido) não pensam; é óbvio que bactérias não pensam, pois não têm cérebros. São formas de vida primitivas, que evoluíram há bilhões de anos, mas não pensam. Mas embora não pensem têm preferências alimentares, senso de orientação, inclusive magnético, estratégias e táticas de sobrevivência sob as piores condições ambientais em todos os cantos do planeta, mas não pensam: o que elas fazem é trivial, resultado da seleção natural, apenas.  Não se esgotam aqui as possíveis denegações sobre o estado apedeuta das bactérias, inclusive os que lhes reconhecem características que lhes permitem ser panglobais: onde houver a mínima quantidade de matéria orgânica lá estarão.  

Por meio da abordagem socrática-aristotélica poderíamos admitir sem dificuldades que só seres cerebrados pensam. Barata tem cérebro, logo pensa. Barata não tem cérebro, alguém diria, apenas um nódulo neural ou caroço situado na região dorsal interna da cabeça. Um emaranhado de neurônios, que fazem as baratas serem mais notadas e temidas que cada um de nós. Elas, similar às bactérias, são primitivas que se distribuem por todo o planeta, passeiam em shoppings, em cruzeiros e voos transoceânicos. Barata comum caseira, nome científico, Periplaneta americana Linnaeus, 1758. Não têm pedigree. Bactérias têm, mas não distinguem entre classes sociais e ainda pegam carona nas baratas. Francis Bacon, racionalista e súdito da rainha, em 1700 e algumas dezenas, resolveu testar estatisticamente se maior ou menor mortalidade existiria entre crianças nascidas em famílias reais do que entre as dos súditos plebeus. Consultou os registros de mortalidade dos primeiros e segundos. Morriam mais crianças nascidas em palácios de famílias reais cheios de baratas, do que o contrário. Concluiu que o poder da reza cotidiana dos súditos, pela vida longa dos primeiros, não surtia o efeito esperado. A não ser que a maioria dos súditos não rezasse. O que seria inadmissível. Gostaria saber o que foi feito de Francis após esse estudo. Ninguém sabe, só as bactérias.

Quem tem cérebro teria mais dificuldade para sobreviver a mudanças ambientais drásticas? Ora, que pergunta absurda! Absolutamente! Quem tem cérebro traça planos, estratégias capazes de solucionar qualquer tipo de problema, por meio de criatividade e inventividade. Basta observar como a criatividade humana se expande por todo o planeta...

Um leão ou uma girafa teriam facilidade de viver no deserto de Atacama? Eles têm cérebros, ou não deveríamos chamar a massa que se aloja no interior de seus crânios, cérebro? Talvez multinódulos agregados, mas não cérebros; girafas, especialmente, parecem não tê-los. E pensar que há baratas que vivem exclusivamente associadas a leões e, ainda a serem descobertas, espécies de bactéria associadas a girafas e preguiças. Disse um ecólogo evolucionista que a evolução dos mamíferos e “nosotros” só foi possível devido à associação com microrganismos. Esse interacionismo não faz sentido ao senso comum, que nunca se lembra de bactérias, sequer quando tem urgência intestinal. No início do século 20, uma senhora acompanhada de sua mucama, perguntava no armazém do português: O senhor tem vaso côncavo para necessidades noturnas? Minha imaginação ficcional interpreta a suposição que somos mais microorganismos que o resto: se todos os microrganismos que vivem em nosso corpo fossem de uma só vez eliminados, nossas estruturas moles – inclusive o cérebro – se derreteriam como o excesso de tinta fresca em um quadro recém-pintado. Não passaríamos de um borrão. Dr. Dráuzio Varela adverte: “estamos sempre correndo riscos à medida que tomamos doses cavalares de antibióticos e favorecemos cepas de bactérias resistentes que também podem nos transformar rapidamente em borrões ou, tecnicamente, matéria orgânica semitransformada”. Mas a outra dele foi magistral! Escreveu um artigo em jornal ensinando-nos a fazer cocô para evitar hemorróidas. Sim senhor! E ainda disse que privada não é biblioteca. Por essas e outras que amo nosso país. A brevíssima aventura humana sobre a terra é um sonho evolutivo que poderá se esvanecer rapidamente, mesmo com toda nossa inventividade, arrogância e sabendo fazer cocô. Se o destino de 99% das espécies que até agora existiram foi extinguir, quanto tempo haverá ainda para aumentar a longevidade da população, desmatar florestas para virar bois e desfrutar as novas tecnologias engendradas em cavernas modernas hipoalergênicas? Muito tempo, diriam os otimistas, que se consideram imortais. O que nos diriam as bactérias sobre a ética, respeito e solidariedade? Obviamente nada, pois não pensam e seu senso ético é magnético apenas. Aliás, abundam entre nós os que carecem de ética; nesse aspecto são indistinguíveis das bactérias, ora não são tão íntimos? Os fins justificam os meios (coitado do Maquiavel, que não deve ter dito isso, morreu pobre e exilado por causas dos políticos de sua época). Ora todos querem melhorar de vida, não é? O discurso politicamente correto é o de que todos têm iguais direitos e devemos melhorar de vida. No Ceará, um político falou que ia botar privadas em casas de pobre. Dr. Drauzio aplaudiu a nobre iniciativa. O político deu ao dinheiro destino “desconhecido”. Resultado: os coitados ainda estão fazendo no mato e se limpando com folha de bananeira. Até mesmo a celebrada moral kantiana derrapa quando o filósofo alemão afirma: “Fiat iustitia, pereat mundus” (faça-se justiça mesmo que o mundo se phôda). A citação latina e respectiva tradução de “chupei” do colunista da folha Helio Schwartsman, na qual não havia a palavra de baixo calão. Trotsky, aquele que disse que a revolução começa na escola, tem um monte de fãs em nosso país que o festejam mensalmente. O festejado disse ser legítimo assassinar, conspirar e etc, mas nunca ser infiel ao partido. Não sei de onde “chupei” isso, mas não foi da capitalista Wikipédia. O próprio foi transformado por meio de uma picaretada que lhe furou o crânio. As bactérias se empanturram de tanta ideologia...

Olhe, olhe! Como se diz no Ceará: encerre definitivamente essa prosa ridícula, posto que medíocre: só homens, mulheres e crianças têm cérebros verdadeiros. Alguns melhorzinhos são cópias melhoradas dos que têm as esponjas e estrelas do mar. Mas apenas crianças os têm infantis? Sei não... Julgam saber e garantir os estudiosos de anatomia comparada que o verdadeiro cérebro, o cérebro nobre, evoluiu a partir de protocérebros, cérebros rudimentares, ou recuando ainda mais no tempo, evoluiu de criaturas descerebradas semelhantes às bactérias atuais. Uma geleia geral. Seria uma grande ofensa, afirmar que evoluímos do cocô de bactérias? Isso não sei, mas que não sabemos fazer isso Dr. Varela garante.

Para que recuar e olhar o passado se o que mais nos interessa é o progresso? Historiadores defendem o assar de suas sardinhas afirmando que olhar o passado é necessário para evitar erros futuros. De jeito algum, o passado só serve para os historiadores não passarem fome. E o presente? Vivemos do passado, presente ou futuro? Acho que dos três e de nossos desejos. Muitíssimos aplaudem emocionados as conquistas de nossos nobres cérebros. O que é a ciência, professor! Não nos permitimos em público declarar um da nossa espécie “burro”, isento dos raciocínios mais elementares. O que fazemos farta e impiedosamente à sorrelfa. Nossos cérebros nobres nos fazem cavalheiros de perucas, punhos de renda e meneios que circulam por salões vienenses fofocando ao som de Mozart.

Nossos cérebros tudo nos permitem. Não há limitações ao ato de pensar, será? Penso o que quero? Talvez, mas falar o que penso não é bom para os que governam e pode causar depressão em nossos amigos... Nossa nobre causa é a de sobreviver e reproduzir. Aliás, o cérebro evoluiu não foi para isso? Ou para dormirmos dentro de uma barrica e cuspir no prato que lhe servia comida, como o fazia Diógenes, o cão. Aquele da lanterna, que procurava um homem honesto. Pirado: botou fogo na casa e foi dormir dentro de uma barrica. Aliás, para que os gregos faziam barricas? Tenho uma hipótese inspirada na idade média. Adivinhem vocês que são inteligentes...

Sobreviver e reproduzir não são de fato o que a grande maioria de nós faz? Ademais, brasileiros somos todos muito bem intencionados, herdeiros de uma ingenuidade inventada pelos colonizadores: fomos criados para o bem. Enquanto isso, La nave vá, tal qual Fellini mostrou em seu navio-cenário. Não raras vezes o cérebro migra para o estômago nauseado, como nos mostra Cronenberg em Videodrome, cujo ator vê romper de seu ventre uma tela de televisão e quando em outro filme o personagem dedetizador se alucina cheirando baraticida.  Estamos sempre matando algo, em especial a curiosidade de nossas crianças, esmagada como uma barata descuidada. Coitadas das crianças. A gente vê quando viram adultos – como sofrem as pobrezinhas. Mas deixemos que cineastas e pedagogos briguem com seus próprios fantasmas. Homens comuns como nós, que sabemos ser a morte inevitável, gastamos nosso tempo tentando esquecer e por isso somos racionais conscientes. Uma nobre espécie, nesse mundo cheio de animais. Cérebros distintos percebem realidades distintas (Dona Dica do meu interior mineiro me dizia calejada de vida: minino, cada cabeça um mundo; quem num tem bunda num senta no morro). Curiosamente, há pelo menos uma semelhança, diria até um padrão: alguns já disseram que em alguma noite sonharam estar voando. Sorry, amostragem insuficiente. Cazzo! Nem o festejado e contestado psicanalista austrogermânico conseguiu sequer esboçar o que poderiam cada um desses universos particulares de giros e circunvoluções. Mas as bactérias ignoram nossas angústias, querem é matéria orgânica! Tá, os neurônios funcionam em redes, tá bom: e daí? Psicólogos não passam de adestradores de redes de cérebros rebeldes e cansados. Muitos criticam, mas na prática todos ficam com Pavlov e Skinner. Poucos têm paciência para considerar as diferenças. Houve quem dissesse que a teoria psicanalítica não avança, pois o profissional não ouve quem narra. Talvez, aflito, queira é colocá-lo em uma das gavetinhas construídas a partir de labirintos percorridos por alguns ratinhos que abrem portinhas ao som de sineta.
       Alguns animais são taxados de imbecis, apenas pelo seu semblante. Girafa e boi, por exemplo. Com quem estão sendo comparados senão a nós próprios, ou melhor, a imagens que fazemos de nós? Por que o preconceito é inevitável? Seria uma forma defesa? Ou a preguiça de considerar a diferença, a diversidade de comportamentos. Não é raro rotularmos uns e outros que lembram a forma e comportamento de animais: bisonho, preguiçoso, porcalhão, bunda de ganso, papagaio de pirata, avacalhado, sapo boi, ruminante, emburrado, macaco velho, bode velho, corujão, urubu de lixão, lesma. Enfim, a lista pode tornar-se infindável nessa pátria peculiar. Além de Freud que procurou investigar o obscuro lado de ser humano, outros nos mostraram que o mundo não é cor-de-rosa. Marx, cujo caráter científico de seus escritos foi contestado pelo epistemólogo Popper, mostrou como o capitalismo poderia vicejar; entregou o ouro e o capitalismo esperto aumentou e sobrepujou os ideais nunca cumpridos de um socialismo supostamente libertário. Darwin nos mostrou que a natureza romântica é áspera. Carnificinas por meio de bandos sanguinários ocorrem a todos instantes. Se ficar o bicho come... Não há almoço de graça, nos alertou o pai da ecologia e evolução. Também não é possível dois ocuparem o mesmo lugar no espaço: um mata o outro ou fica doido e mata quem não tem nada a ver. O protoplasma é irritável. Basta que alguém se encoste à gente prá dar choque. Só vale encostar se for para ganhar algo. Aí é tolerável. A natureza humana se traduz em custo-benefício. O famoso experimento de superpopulação de ratos em gaiolas. A aglomeração causa vários tipos de transtornos mentais em ratos apinhados, mesmo que tenham espaço adicional, comida e água farta. As bactérias fazem festa. São como urubus, esperando. Li outro dia que Einstein tinha derrubado Newton; um verdadeiro ultraje à memória do criador do cálculo, se não me engano diferencial, seja que diabos isso possa significar. Desconhece o autor de tamanho disparate que o mundinho nosso ali da esquina funciona de acordo com previsões de equações newtonianas simples. Einstein não foi necessário para o homem chegar à lua. Mas chegar lá prá fazer o que? Sei não sô, talvez com quase certeza eu seja muito ignorante. Mas o físico alemão (como tem alemão prêmio Nobel!) nos contou que o universo é curvo, que há buracos negros à nossa espreita; nem as bactérias escapam. Buraco negro! Já pensou mencionar isso num boteco cheio de machos? Leva porrada de todos os lados! Enche-me o orgulho de ter um cérebro, mas para quê? Se for para passar tempo, tudo bem, mas para quê? Para nos sentirmos mais felizes? Mais felizes para que? Somos infelizes? Ou devemos aceitar que nascemos infelizes e incapazes de alcançar a felicidade plena? Acho que as bactérias ignoram isso tudo. Crescer e reproduzir, assim funciona a natureza cruel, dura, insensível e antiética (acalmem-se psicólogos, sociólogos e antropólogos, não é ainda o fim do mundo e a natureza humana é especial...). O que tentamos dizer na maioria de nossos discursos inúteis? Que é dureza carregar o fado cotidiano? No íntimo da fronha cada um de nós sabe sobre a sua estrada. Que ao acordar precisamos pentear os cabelos e ensaiar qual será nossa expressão facial para aquele dia. Se for segunda-feira, dizem que é pior. E as bactérias, o que fazem à noite quando todos dormem?