terça-feira, 30 de maio de 2017

Brasil



Rogério Parentoni Martins


"Brasil, meu Brasil brasileiro, meu mulato inzoneiro" (que provoca intrigas, que se faz de sonso); "deitado eternamente em berço esplêndido" (forrado com lençóis e cuecas corrompidas). Joaquim Pedro de Andrade e o nosso Macunaíma, um herói sem nenhum caráter, magistralmente interpretado pela Dina Sfat, quando pariu o pequeno Grande Otelo. A Ópera do Malandro, épico da malandragem, de Chico Buarque. Zé Carioca, o urubu malandro com camisa do Flamengo, todos personagens caricatos de uma realidade surreal. "Moro num país tropical abençoado por Deus"; como fico se sou ateu? Nossa alegórica cultura, cujo traço marcante, ficou imortalizado nas palavras de um jogador de futebol e alçado à condição de lei "levar vantagem em tudo". Não me emociono com as simulações dos endeusados jogadores de futebol: o que vejo é pura malandragem, disfarçada de talento.  Podemos dizer imoral ou amoral; a falta de caráter é amoral. O Brasil solidário é uma sofisticada peça de ilusão. Manuel Castell, sociólogo espanhol, desmascarou nossa falta de vergonha, ao apontar-nos a falta de solidariedade de que padecemos, já ironizada pela expressão "brasileiro é bonzinho". Para contar piadas de mau gosto, ocasiões em que, descaradamente, nossos preconceitos se mostram, somos campeões. Até uma fruta, marmelo, serviu para caracterizar um traço marcante de nosso caráter: a marmelada. Houve quem dissesse que honesto é aquele que não teve oportunidade de roubar, não o que trabalha direito, paga suas contas, altíssimos impostos, para deleite dos "grandes brasileiros" e seus acólitos. Falar em bando, quadrilha, súcia, corja ficou corriqueiro. Para roubar muito, não dá prá roubar sozinho, é preciso fazer promissoras alianças, onde todos ganham e muito: ninguém reclama. Um político piauiense que forjou seu caráter nas montanhas das Gerais, há tempos pontificou "esse não é um país sério", o que foi atribuído a De Gaulle. Se for ao exterior, talvez não seja prudente dizer que é brasileiro, a não ser que tenha algo em nosso país que seja motivo de orgulho, será? Em tom de chiste, que muitos podem até se orgulhar, certamente ouvirá: "Pelê, carnival, mulatá". Respondermos: "yes, we have bananas". 


"Triste Bahia"
                                                                 Caetano Veloso e Gregório de Matos
Triste Bahia, oh, quão dessemelhante…
Estás e estou do nosso antigo estado
Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado
Rico te vejo eu, já tu a mim abundante
Triste Bahia, oh, quão dessemelhante
A ti tocou-te a máquina mercante
Quem tua larga barra tem entrado
A mim vem me trocando e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante

Triste, oh, quão dessemelhante, triste
Pastinha já foi à África
Pastinha já foi à África
Pra mostrar capoeira do Brasil
Eu já vivo tão cansado
De viver aqui na Terra

Minha mãe, eu vou pra lua
Eu mais a minha mulher
Vamos fazer um ranchinho
Tudo feito de sapê, minha mãe eu vou pra lua
E seja o que Deus quiser

Triste, oh, quão dessemelhante
ê, ô, galo canta
O galo cantou, camará
ê, cocorocô, ê cocorocô, camará
ê, vamo-nos embora, ê vamo-nos embora camará
ê, pelo mundo afora, ê pelo mundo afora camará
ê, triste Bahia, ê, triste Bahia, camará
Bandeira branca enfiada em pau forte…

Afoxé leî, leî, leô…
Bandeira branca, bandeira branca enfiada em pau forte…
O vapor da cachoeira não navega mais no mar…
Triste Recôncavo, oh, quão dessemelhante
Maria pé no mato é hora…
Arriba a saia e vamo-nos embora…
Pé dentro, pé fora, quem tiver pé pequeno vai embora…


Oh, virgem mãe puríssima…
Bandeira branca enfiada em pau forte…
Trago no peito a estrela do norte
Bandeira branca enfiada em pau forte…
Bandeira…

Enfim, parece ser confortável ser amador; muitos confundem com autêntica criatividade: Esse é nosso jeitinho: em se plantando dá...

quarta-feira, 17 de maio de 2017

A incerteza das certezas



Rogério Parentoni Martins
 



Caminhava por uma praça em Belo Horizonte, quando escutei de um garoto cerca de 10 anos: “mãe, é impressão minha ou o mato cresceu?” O mato a que ele se referia é um gramado que circunda parte do perímetro da praça. A mãe respondeu: "cresceu sim, meu filho, você tem razão". A despeito de ser trivial, o episódio desse curto diálogo que, afortunadamente, pude ouvir levou-me a refletir sobre a incerteza das certezas. O garoto procedeu com cautela ao duvidar que o fato de o mato ter crescido poderia ser apenas uma impressão sua; expressou honestamente sua dúvida sobre se realmente o mato haveria crescido após sua última estada na praça. Talvez o garoto ignore, mas a dúvida e curiosidade, demonstradas por meio de sua cautelosa pergunta, são os principais "drivers" do conhecimento científico. Por isso, ocorreu-me estar diante de um potencial cientista. Ocorreu-me também que a "certeza" da mãe, árbitro com autoridade naquele momento crítico de dúvida, poderia ser equivocada por dois motivos: i) a certeza da afirmação materna poderia eliminar a possibilidade de que o garoto pudesse continuar a refletir sobre a dúvida, desvanecendo rapidamente sua curiosidade, e ii) poderia ser o início de acomodação sobre o pensar sobre eventos, triviais ou não, e estimular submissão à opinião de quem ele julgar superior a si em vivência e conhecimento. Ambos os motivos podem alimentar mitos, resultados de observações superficiais sobre a ocorrência de eventos ou fenômenos complexos, repetidos à exaustão. Quantas vezes repeti sem duvidar sequer um centímetro da certeza do que me disseram professores ou autoridades. Felizmente, não percebi tarde demais o meu equívoco. Tornei-me cauteloso como o garoto cuja afirmação estimulou essa reflexão. Espero que o garoto continue a duvidar de suas próprias opiniões e das opiniões de outros; se optar em tornar-se pesquisador possa avançar mais cedo do que estou a avançar, por ter percebido mais tarde esse aspecto importante sobre a origem do conhecimento. Finalmente, espero que garotos com tal potencialidade não sejam massacrados em sala de aula, simplesmente por duvidar e expressar suas dúvidas, transformado-se em um adulto submisso à 'veracidade' das "incertas certezas".