segunda-feira, 20 de março de 2017

Remanescente

Rogério Parentoni Martins

                  Sei que a existência não se mantém estável pela peia. A mais sutil brisa desperta emoções epidérmicas. Não emoções boazinhas, condescendentes, piegas, estímulos hipócritas apenas; emoções de túmulos frescos expostos aos vôos dos morcegos desrespeitosos da memória dos mortos. O que as pombas fazem de dia, os morcegos repetem à noite. Aquelas sobre as calvas memórias dos ilustres nas praças; estes sobre os jazigos. Nem por isso deves odiar morcegos porque são feios e as pombas bonitas. A beleza pode ocultar insidiosa trama travestida de desejo. A feiúra não se esconde sob camadas de cosméticos. Ali vem o feio; evites olhá-lo envergonhado de ter vergonha; ali vem o aleijado; não o humilhes com olhares condoídos. Assuma-te como os morcegos; previsíveis a partir do crepúsculo. Ou como as pombas, pousadas sobre seus bustos preferidos.

                A existência balanga beiço como o enforcado em tarde plúmbea de dúvidas. Os animais se apartam entre sombra e sol, segundo seus próprios instintos. Reparastes andorinhas pousadas em fios de energia? Entre um e outro corpinho de freira, espaço medido com a precisão de uma asinha aberta. Ultrapassou, leva um chega prá lá, em breve, incisiva bicada. A existência quer o vazio, precisa de oxigênio para aliviar a angústia do suspiro contido.

                Os corpos animados se sucedem em procissões intermináveis. Sequer suspeitam sobre o destino da rota. Seguem de olhos fechados o trote da manada. A suposta segurança da manada não elimina a apreensão das pálpebras. O vivo sempre alerta? Evita bueiros carcomidos pelo tempo. Suspeitaria dos subterrâneos misteriosos? Temeria a solidão do grito? Socorro não alcança a profunda escuridão. Grite alto, ferido de morte: sou humano! Ninguém escutará, ocupados estarão como o eco de seus próprios gritos. Apenas mais um grito, apenas mais um humano.

                A chuva cai fria como romance de Stendhal. Corvos disputam espaço nos ombros do enforcado ainda quente. Bicam entre si, esvoaçam, arredam-se querendo alcançar-lhe os olhos esbugalhados. Por que preferem os olhos os corvos? Que fascínio lhes exercem órbitas vazias? Urubus não. Seus corpos encarquilhados de experiências mortais, aguardam o corpo imóvel. Não lhes interessam os olhos. Bicam-se por causa do fígado. Não se empoleiram, apenas aguardam a hora dos urubus.

                As chamas da lareira crepitam em teus olhos azuis. Teus cabelos negros escorrem pelo meu peito descrevendo sinúsia. Penso que te amo. Não sei o que é amor. Que confusos sentimentos incendeia. Tremo ao tocar-te a pele untada de fragrâncias suaves. Gosto do teu ressonar distraído. Teu corpo indefeso amparado no meu. Como dizer-te que não sei amar-te?

                A chuva ainda cai como em romance de inverno. O tapete desarranjado no arranjo dos corpos. Nas taças vazias restaram tintas nódoas discretas. Ainda ressonas inocente como se a vida coubesse plena no momento. Como desatar o fio da finura de um cílio que nos une? Noites de inverno não merecem sobressaltos. São noites de aconchego. Quanto mais te aconchegas, a coragem se me esvai. Não durmo. O que ela sente quando em meu corpo se ampara? Não vês que sou um desconhecido perdido em noite de inverno europeu? Tomas meu corpo como teu. Desejas o amálgama.
                Ouço o relógio da igreja fantasiado de destino. Não te conto quantas foram as badaladas, em vigília a um corpo que no meu se ampara, em noite de chuva fina que antecipa a neve em Stendal.

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