Rogério Parentoni Martins
Sei que a existência
não se mantém estável pela peia. A mais sutil brisa desperta emoções
epidérmicas. Não emoções boazinhas, condescendentes, piegas, estímulos hipócritas
apenas; emoções de túmulos frescos expostos aos vôos dos morcegos desrespeitosos
da memória dos mortos. O que as pombas fazem de dia, os morcegos repetem à
noite. Aquelas sobre as calvas memórias dos ilustres nas praças; estes sobre os
jazigos. Nem por isso deves odiar morcegos porque são feios e as pombas
bonitas. A beleza pode ocultar insidiosa trama travestida de desejo. A feiúra
não se esconde sob camadas de cosméticos. Ali vem o feio; evites olhá-lo
envergonhado de ter vergonha; ali vem o aleijado; não o humilhes com olhares condoídos.
Assuma-te como os morcegos; previsíveis a partir do crepúsculo. Ou como as
pombas, pousadas sobre seus bustos preferidos.
A existência balanga beiço como o enforcado em tarde
plúmbea de dúvidas. Os animais se apartam entre sombra e sol, segundo seus
próprios instintos. Reparastes andorinhas pousadas em fios de energia? Entre um
e outro corpinho de freira, espaço medido com a precisão de uma asinha aberta. Ultrapassou,
leva um chega prá lá, em breve, incisiva bicada. A existência quer o vazio,
precisa de oxigênio para aliviar a angústia do suspiro contido.
Os corpos animados se sucedem em procissões
intermináveis. Sequer suspeitam sobre o destino da rota. Seguem de olhos
fechados o trote da manada. A suposta segurança da manada não elimina a
apreensão das pálpebras. O vivo sempre alerta? Evita bueiros carcomidos pelo
tempo. Suspeitaria dos subterrâneos misteriosos? Temeria a solidão do grito? Socorro
não alcança a profunda escuridão. Grite alto, ferido de morte: sou humano! Ninguém
escutará, ocupados estarão como o eco de seus próprios gritos. Apenas mais um
grito, apenas mais um humano.
A chuva cai fria como romance de Stendhal. Corvos
disputam espaço nos ombros do enforcado ainda quente. Bicam entre si, esvoaçam,
arredam-se querendo alcançar-lhe os olhos esbugalhados. Por que preferem os
olhos os corvos? Que fascínio lhes exercem órbitas vazias? Urubus não. Seus
corpos encarquilhados de experiências mortais, aguardam o corpo imóvel. Não lhes
interessam os olhos. Bicam-se por causa do fígado. Não se empoleiram, apenas
aguardam a hora dos urubus.
As chamas da lareira crepitam em teus olhos azuis. Teus
cabelos negros escorrem pelo meu peito descrevendo sinúsia. Penso que te amo.
Não sei o que é amor. Que confusos sentimentos incendeia. Tremo ao tocar-te a
pele untada de fragrâncias suaves. Gosto do teu ressonar distraído. Teu corpo
indefeso amparado no meu. Como dizer-te que não sei amar-te?
A chuva ainda cai como em romance de inverno. O tapete
desarranjado no arranjo dos corpos. Nas taças vazias restaram tintas nódoas
discretas. Ainda ressonas inocente como se a vida coubesse plena no momento.
Como desatar o fio da finura de um cílio que nos une? Noites de inverno não
merecem sobressaltos. São noites de aconchego. Quanto mais te aconchegas, a
coragem se me esvai. Não durmo. O que ela sente quando em meu corpo se ampara?
Não vês que sou um desconhecido perdido em noite de inverno europeu? Tomas meu
corpo como teu. Desejas o amálgama.
Ouço o relógio da igreja
fantasiado de destino. Não te conto quantas foram as badaladas, em vigília a um
corpo que no meu se ampara, em noite de chuva fina que antecipa a neve em
Stendal.
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