Rogério Parentoni Martins
Ao alvorecer, o senhor das horas estende seu tapete de
certezas. Ao crepúsculo o recolhe escasso de dúvidas. Dia pós dia, noite pós
noite, estender e recolher os dias assim vividos. Cá no meu canto,
interrogações decoram paredes alvas de sonhos. Quando suponho avançar, estendem-se
sobre o piso: Homem esse é seu caminho?
Como
qualquer ingênuo, suaves fragrâncias desenho em realidades fictícias. Segundos
nunca me foram escassos; imprimem na senda rastros imperfeitos. Imaginem, eu que
alguma vez me considerei perfeito, como se necessário fosse. Faltam-me o
talento de hábeis atores, o convencimento dos pios, a elegância dos filósofos,
a certeza dos santos, os sonhos do poeta. O ânimo conduz-me intermitente
claudicante; ciclos sobrepostos, afirmação-pausa-negação. Meros ciclos somos; cada qual a seu
feitio tece a história do seu tempo. Desnecessário afirmar que a carne fenece
quando os ciclos cessam. Apenas um único
momento o acaso não contará, marcado em segundos, minutos, horas, dias ou anos.
Séculos pertencem a abstrações não vividas.
Alguém
me diria onde sua sólida certeza se ampara? Sua voz sairia sem o tremor da
dúvida? Haveria um só homem cuja certeza lhe empurraria para abismo de olhos
límpidos? O que restaria ao corpo inerte, esperança? Ouça quem ignora futuros: "não
reclames, irmão, a cada qual cabe a vida rascunhada. Cerre os dentes e parta.
Evite caminhos de prazeres efêmeros. Qualquer prazer deverá durar ao menos um
dia sem olvido".
Enquanto
isso, aves voam seus destinos de cadáveres. À coruja restam os olhos de noites
densas, sem o clarão da lua a iluminar pequenos roedores. Olhos de abutres
margeiam estradas à procura de reses trôpegas. Leões de bucho cheio espreguiçam
no por do sol savânico, onde gnus cabisbaixos pastam seus destinos. Por um
momento, para alguns breve, a outros angustiante, impera o silêncio em todos os
biomas. Cessa a verdadeira música do mundo tocada em pautas carnais. Gracejo
desesperado não se ouve. Sorrisos outrora radiantes contem-se em cerradas
comissuras. Nos existentes, o medo do pósvir. Haveria trama desvelada a
qualquer momento? Engoliria a próxima pausa? Máquinas emudeceriam ante a falta
de músculos? Só ouviríamos aquele vento que nunca cessa na órbita em movimento?
Ato pós
outro em sucessão genealógica. Atos mudam, homens não. Falsos testemunham cenas
feitas de lamúrias. A carne vive a inércia que o desespero plasma. Se algo
etéreo espiar dentro de nós, encontrará animais em gestação. Onde se encontra a
coragem para desnudar a verdade?
A
cópula é prenúncio de imperfeição. Corpos fatigados pedem apenas descanso, para
retornar ao mesmo sacrifício. O destino cinemático nos olhos vazados dos poetas
e vagabundos que teimam existir. A quem foi dado o direito de conduzir a manada
segundo seus próprios propósitos? Todos devem marcar o mesmo passo; os
desgarrados, o látego lhes corrigiriam a rota. A tolerância admite apenas três
reincidências pré-alijamento. Degredo, o destino dos eternos insatisfeitos.
Crianças
serão encorajadas a mentir para não desconstruir o construído. A todos a
felicidade caberá no cumprimento das tarefas que lhes foram destinadas por
detrás dos muros das escolas. Os cumpridores receberão comendas e abrigos em
instituições públicas. O que é publico caberá aos cumpridores, aos demais o
benefício da dúvida, desde que não se desviem das verdades concedidas.
Palavras,
meros ardis. Uma rosa não é uma rosa, é luxo fabricado. Um pássaro canta em
minha mão a certeza da liberdade; em minha mão o pássaro muda. Na gaiola canta
como negros em senzalas à espera do açoite. Não há palavra que minta mais que a
verdade; mas os ingênuos ainda se curvam à sua soberania. O homem é um
dicionário animado à frente de outro homem; à sós é outro homem. Palavras constroem
pontes que desabam; desandam amores que acabam, não sanam aflições. Escolha palavras
adequadas a cada ocasião, do repertório vocabular que atende a todo propósito.
Palavras com sorrisos enganam mais que cenhos franzidos. Vitupério está fora de
uso, embora abunde nos botecos e na intimidade dos lares. Fui criado com
dicionário, hoje metabolizo palavras.
Para
que o refrão se quem ouve a música não é surdo? Refrão é para lembrar que o
mesmo continua mesmíssimo, mesmo que mude a entonação, a palavra não. Solidão é
silêncio de violino sem mãos; de quem se foi sem o último adeus, de quem não
sorveu o sorvete que derretia ante o olhar perdido, na pura areia dos desertos
metropolitanos.
O homem é objeto animado à
frente de outro homem, apenas. À sós é sorvete de morango, que não é morango, e
breve será.