segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Vinte quatro horas de vários dias inglórios

Rogério Parentoni Martins


Tanto faz o início, ao deitar ou levantar. Os dois atos, inversos, são contínuos. Acordo após 6 horas de sono ininterruptos. Apenas os olhos abrem; o restante do corpo inerte, não resiste à perplexidade. Cada acordar é como um parto natural: a vagina a cama; o eclodido sou eu. São minutos até ouvir estalar algo dos pés. O espreguiçar sempre me lembra gato; muito menos flexível, meu caso. Durmo nu, querendo a liberdade que só o corpo despido permite. Às vezes, quase sempre, o membro ingurgitado, como se quisesse algo mais que urinar. Manobro o corpo de lado, levanto lateralmente para não comprometer a lombar. Levo a mão apalpando a coxa da prótese total de quadril, que há 10 anos penso poder se soltar. O banheiro da suíte recebe um corpo de hesitantes primeiros passos. Não me olho ao espelho, assim evito o susto. Sento ao vaso para urinar, mão sustentando o queixo, me lembra Rodin. No meu caso, apenas pensamentos intermitentes, sem nexo. Na posição permaneço alguns minutos. Levanto-me segurando a tábua para evitar que colada às coxas possa se desprender e provocar barulho. Chega a hora do espelho. Cabelos desgrenhados pedindo gumex, do qual poucos lembram; a maioria calvos. Repito a rotina como se fosse necessário para dar ordem ao dia. Com sabão neutro esfrego os olhos fechados, antes de ensaboar os óculos. Penso que preciso enxergar o mundo claramente, mas não sei por que. Molho os cabelos, escovo os dentes rapidamente, apenas para tirar a gosma, pois o farei novamente após o café. Faz calor, mas desligo o ar condicionado da sala (24.000 BTU, British Termal Units), que mantive ligado a noite inteira. Não sei também por que preciso saber isso. Aborto pensamento que me impele a explicar mais o significado de BTU. Penso, se fosse eu a ler, ficaria de saco cheio. A sala continua-me familiar. Dá-me sensação de intimidade e proteção. Penso sempre em ligar primeiro a televisão; retrocedo para manter a liturgia e ando em direção ao fogão, onde a cafeteira italiana, abastecida no dia anterior, aguarda o fogo da trempe. A baguete esquartejada e lambuzada de manteiga, espera meu comando ao forno para que a manteiga derreta até os quartos ficarem crocantes. Retiro a cafeteira ao primeiro manifestar da válvula de segurança; evito a fervura. Na mesa, um apartado de tecido de jogo americano serve de suporte para a cafeteira. Retorno à cozinha, abro a geladeira de onde retiro suco de laranja integral Valle e iogurte Itambé de coco. No copo vazio da água levada ao quarto antes de deitar, verto três dedos do suco. Em seguida corto ao meio o mamão Havaí, ingiro 10 sementes, após mastigá-las, para liberar algo que dizem cicatrizar pequena lesões na parede do estômago causadas pela ingestão diária de vinho. Enquanto aguardo os quartos da baguete, tomo o suco e ingiro a polpa das duas metades do mamão. Já com o copo cheio de iogurte, tomo os remédios diários, antihipertensivo e antidepressivo. Terminado o café, sento-me ao sofá para assistir o Bom dia Brasil, mas não até o fim: substituo-o por jazz que ouvirei até a hora do almoço. Enquanto isso penso sobre o que almoçarei: se algo já preparado ou preparei algo. Retorno ao banheiro onde leio a Folha de S. Paulo, enquanto faço necessidade elementar. Apesar de Dr. Dráuzio Varela ter comentado sobre o risco de hemorróidas e que banheiro não é biblioteca. Didático, mas não funciona. Em seguida ligo o computador e trabalho mais ou menos 2 h, às vezes em texto técnico outras vezes em textos semelhantes a esse. Há os dias em que não escrevo mais do que poucas palavras, corrijo gramática, mas o tédio se apodera de mim. Às 10 h paro, como uma laranja serra d'água com o bagaço, no Rio Grande do Sul conhecida por laranja do céu, devido a razões intestinais. Saio às vezes sem rumo ou para supermercado à procura de ofertas. Retorno já perto da hora do almoço; continuo a ouvir jazz. Meio dia começo a ingerir salada de folhas com tomate, azeitonas e palmito. Enquanto isso no microondas esquento o prato principal. Durante o almoço mais jazz ou jornal televisivo. Termino o almoço, bochecho várias vezes para retirar resíduos alimentares: o gosto do café se alteraria se escovasse os dentes, o que faço cerca de 30 minutos após beber o café, este em cápsula na máquina Nespresso, presente de minha irmã. A manhã felizmente já se foi. Recosto no sofá onde cochilo parte de filme B que acostumei a assistir sempre pós-almoço. Se perco trechos, não me faz diferença alguma. Às 14 h, verifico e-mails, percorro sites de relacionamento e tento trabalhar mais um pouco, o que raramente consigo. Às 16 h como uma fruta antes de ir a padaria comprar outra baguete, no jantar comida parcialmente, às vezes recheada de carne moída com gorgonzola e cebolinha. Às 17 tomo banho e, às segundas e quintas, vou ao Café com Letras do CCBB, na praça da liberdade, para ouvir jazz ao vivo. Levo comigo o vinho de preferência, pois não me cobram rolha. Sento-me à mesa cativa e brindo uma taça com o gerente que apelidei Dártagnan. Mas antes disso, o dia para mim se arrastara penosamente e a noite parecia nunca chegar. A noite me importa; sinto-me bem, especialmente após abrir um vinho, ver um ou dois filmes A, quando não ouço jazz, à espera do sono, não antes das 24 horas. Quando tenho tédio não consigo ler, a não ser que seja um livro excelente. Atualmente leio o "Filosofia do Tédio", de um filósofo norueguês e o ótimo "A lua vem da Ásia" do redescoberto Campos Carvalho, mineiro de Uberaba. O tédio é terrível, sem causa aparente. Não pode ser combatido. Mesmo quando o julgo findo, seu espectro me ronda como fera faminta.